Sou
capaz de te compreender no teu sofrimento. Tu que sempre foste rei.
Caído
agora que estás, derrotado por ti próprio, esquecido por todos, calculo que não
será fácil estar na tua pele e vestir de manhã o corpo que vais mal tratando.
De
doente que está, de culpa e vergonha que são mantos que carregas e tentas
abandonar quando, no final do dia, bebes o último trago de vinho.
Dizes-me
que tens os dentes a apodrecer, dentes castanhos da acidez do traço da uva
madura,
que
te estás a cagar para o aspecto que tens, pois a ucraniana com quem andas a
foder, não quer saber do sofrimento que os teus olhos escuros e vazios
estrebucham, porque o único interesse que tem é no prazer que o teu caralho lhe
poderá dar.
Consigo
te compreender quando me dizes que não és capaz de viver sem o vinho.
Juro
que. Consigo.
Tanto
tu como eu, ambos sabemos onde vais acabar, e não será a arrumar carros em
Lisboa, como me disseste enrolando as palavras, a juntar trocos que vais
estourar num tasco qualquer ali para os lados da Almirante Reis, tu que és rei
sem reino, vais acabar na cova. E, porventura, será aí que encontrarás, por
fim, a paz que te foge há tanto tempo.
Consigo
te compreender, porque me revejo noutros tempos, envergando igual desespero,
igual dor, igual destempero pela vida, igual desolação e passeios percorridos
na indisposição infinita, o corpo dobrado para vomitar o que se acabou de meter
e que já não cai no fundo do estômago que arde.
Vejo-te
curvado sobre muros, agarrado para não estatelares no chão o rosto que já não tens, a cara nas paredes carcomidas, feições torcidas à força do esófago
queimado e tu,
rei
que és, nada saberás do que te sei.
Mas
são assim os caminhos de cada um. Faz boa viagem, amigo.