quarta-feira, 13 de agosto de 2014

bigornas

Curiosamente, sinto-te mais longe quando estou por perto. De ti nada saber, tornou-se no meu passatempo favorito, pois dá-me espaço para imaginar aquilo que necessito e que não necessito. Visões terríveis, bigornas e martelos de aço. Uma ou outra vez, deixo-me adormecer para que me encontres na candura da minha ignorância onírica. Uma ou outra vez, surpreendes-me com véus dissimulados, sentimentos a galgar prados de ausências, sentimentos a galgar para lado nenhum

Curiosamente, sinto-te mais longe quando estou por perto. Deverá ser isto a verdadeira solidão. E, tu, por onde andas?

terça-feira, 1 de julho de 2014

ciclos

Falas-me sobre ti e dizes que chega. Que acabou, que o capítulo se fecha aqui. Depois dizes o que mutila, me corta as pernas, amputa braços, arranca dentes, puxa cabelos pela raiz, tudo isso, mais os tremores interiores da ansiedade que assusta, o coração a bater na garganta, o olhar raiado, e, novamente o coração, ainda mais furioso, a querer espumar-se da boca seca. Que mereces melhor. Que vais à tua vida, por mais cabeçadas que dês, um dia, pelo menos, hás-de acertar uma, uma seta no centro desse alvo chamado felicidade. Sweet Jane. Felicity Pearl.
Que estás cansada do convívio doentio a três, e que o pouco que te resta da dignidade, há-de tomar a proporção de um titã a segurar os céus. E que vais renascer, em Paris, Nova Iorque, Banguecoque ou na Cochinchina, que muita gente nem sabe que fica no sul do Vietname. Mas Ho Chi Minh já não é capital de guerra, e tu estás farta de todos os meus torpedos, morteiros, napalm, gases que ardem na vista e que escalpelizam lágrimas. Que chega.
E eu, em silêncio, mergulhado em ciclos de passados e com vista turva no futuro, encerro a mesma e penso, há quanto tempo queria, por mais que me matasse, ouvir-te detonar tais palavras.
Depois, num lampejo, de uma clareza interior, acabo por sentir o coração a desacelerar, o comboio interior da respiração a abrandar, a lenha a queimar de forma lenta na locomotiva do corpo, esboço um sorriso familiar, aquele que deixa partir o que não deveria de partir, o sorriso dos que perdem, de quem sente a saudade do que ainda não foi, mas que está a ser, que está a ir embora. E neste estremecimento febril, lágrima presa que teima em não escorrer no rosto gasto e escavacado, os meus sentimentos dirigem-se para os teus caminhos de amanhã, que possas, sim, que possas conquistar os novelos que te sirvam as medidas nos tecidos de prazeres que hás-de vestir, como me disseste, que as palavras te sejam manto de realidade e não uma história qualquer falhada como a nossa.

Desligo. E ecoam-me as tuas últimas sílabas – hás-de-a-ca-bar-so-zi-nho.

terça-feira, 17 de junho de 2014

...

Ontem, ao fim do dia, fui fazer uma corridinha. Ao percorrer um trilho por uma urbanização deserta, vi dois carros estacionados. Num deles, dos dois lados, pendiam braços dos vidros abertos, com cigarros acessos nas mãos. Pensei que fosse o cigarro clássico depois de uma foda bem mandada. Não fosse a mente deturpada que tenho, e imaginei que era tudo puro. Um encontro entre apaixonados, e não amantes perdidos num romantismo qualquer de encornanços com vista para os arbustos e para as caixas de electricidade com as tampas abertas porque o cobre dá bom guito. Não fosse a minha mente deturpada, e imaginei, também, que não havia em casa de cada um deles alguém à espera de ninguém, com o jantar a arrefecer num prato, um miúdo a berrar no banho, uma mãe preocupada com os afazeres domésticos, um marido a trabalhar até tarde no escritório, nada, tudo puro, só mais um final de tarde agradável passado nas ruas desertas por quem não lhe apetece ainda ir já para casa. Continuei a corrida, e não fosse a minha mente deturpada e acreditaria nos amores puros, mesmo em terrenos remotos e estradas desoladas.

sexta-feira, 13 de junho de 2014

a nossa pele

Uma amiga minha liga-me a contar que um ex-namorado (detesto o termo «ex»), agora casado há uma cabazada de anos, pai de dois miúdos, lhe anda a ligar continuamente para ir ao tal café «clássico», com uma vontade enorme de a ver e ela já não sabe muito bem como lidar com a situação, uma ex-namorada minha (já disse que detesto o termo «ex»?) liga-me a contar que a noite dos santos foi hardcore, que abusou do vinho e das jolas, e que, na euforia com um grupo de amigos, partiu uma montra, passando a noite a ressacar na esquadra, o álcool não é para qualquer um, digo, e agora não sabe muito bem o que lhe vai acontecer, pagar a montra no mínimo, digo, depois, um amigo meu de infância, casado também, que encontrei ali à porta de um café onde fui desafiar a minha sorte no Euro-Fuckin'-Millions (para quando a puta da viagem à volta do globo terrestre?) conta-me que no trabalho anda a ser assediado à bruta por uma loura com tamanho de sutiã (fui ao Priberam para confirmar como se escrevia em português) 40 copa B, e também já não sabe gerir, como ele diz - a pressão, que um dia talvez ceda, mas que não quer magoar ninguém, e eu respondo, tenta uma cena a 3 com a tua mulher, também não percebo um corno de relações, enfim, já se sabe que estar na nossa pele é fodido, e que nunca estamos bem com o que temos, mas acredito que a paz há-de chegar a todos, ou então estou só ligeiramente optimista, e penso que vou ali para a praia, apanhar um escaldão na minha pele, a espera que depois ela caia porque estar debaixo dela também é lixado e também não sei o que quero. É isto.

quarta-feira, 11 de junho de 2014

improvável

Meu Deus, de alguma forma, sinto-me improvável. Porque gosto de me envolver e envolver-me é insuportavelmente improvável. Sabes que é assim na maior parte das vezes - murmuro agora. Dias houveram em que me perguntaram o que espero da vida. Não espero nada. Sou demasiado orgulhoso para esperar o que quer que seja. Que correntes queres quebrar? Nenhumas - respondi em ingenuidade. Digo-te que quero ser o último a extinguir-me. Como o sol e, maravilhado pela imaginação, não posso deixar de sorrir. Ele será o último. O último a extinguir-se, para lá de qualquer constelação, para lá de qualquer suspiro, para lá de qualquer movimento, para lá de qualquer natureza. Como aquele beijo que transcende sem transcender. Sabor da promessa de ficar. Como único e singelo gesto de se realizar. Deitas-te. Para o ar. Fechas os olhos e admiras o escuro. O escuro do teu interior, das tuas pálpebras, no fundo - e, tu sabes -, o escuro da testemunha que és. Se existe um ponto de retorno, o ponto onde a tua mente desagua - garanto-te - esse ponto está aqui. Vincado e definido. Anseias em aproximar-te. Tens medo do que possas sentir. Fundes-te com o sempre e com o sempre de sempre. Esquecer. Esquecido. Lembrar. Lembrado. Não voltes a ti hoje. Abraças uma árvore. A vertigem do alto de um grito confundido e da memória obsoleta. Temes o perfilar dos segundos, os minutos, as horas, os segundos outra vez, as horas outra vez, os dias todos de uma vez. Acelera-te o coração - não sabes parar. E vem-te à cabeça – sim, certo - as escolhas. As tuas tardes de quarta-feira, de segunda-feira, de sexta-feira, as tardes que forem. Dias da semana em que escapavas e te escondias com uma pungente palavra por revelar. Uma palavra por dizer. Algo que não saía. Uma palavra que se podia imolar no limiar dos sentidos e que desperta em ti a eterna lembrança. Estás aqui. Não acreditas que estejas, e não acreditas no que vês, mas estás. Se ao menos eu pudesses acordar. Mas, meu Deus - quem quer que sejas, carne e osso, ar e sal, meu Deus, eu devo ser improvável. E, no limiar deste caleidoscópio de sangue e tecidos, esqueço sentidos e perco-me. Não demoro muito, saber-me partido. É sempre assim.

quinta-feira, 5 de junho de 2014

dentes no chão

Tenho um lua gorda, estúpida e libidinosa pendurada na garganta, no gargalo gasto, ávido de saliva, espelho do que não tenho, não sei se morra na morte que não quero ou o quê, fundo diluído, desespero o meu, tradição que não quebro neste mundo que é teu, monstro asqueroso que me bate à porta que quero abrir, com os dentes no chão já não sei o que é rejuvenescer. Sou amputado de nascença.

segunda-feira, 2 de junho de 2014

subtracção de mim mesmo

Tenho os braços dormentes, alma e corpo exauridos, sou uma colecção de dias errantes carcomidos por acasos, sopas de cavalo cansado que engulo na ânsia de não deixar que o meu esqueleto desmaie nos precipícios da doença, e de ser triste e deslocado na equação com resultado igual a um conjunto vazio

sábado, 31 de maio de 2014

rei sem reino

Sou capaz de te compreender no teu sofrimento. Tu que sempre foste rei.
Caído agora que estás, derrotado por ti próprio, esquecido por todos, calculo que não será fácil estar na tua pele e vestir de manhã o corpo que vais mal tratando.
De doente que está, de culpa e vergonha que são mantos que carregas e tentas abandonar quando, no final do dia, bebes o último trago de vinho.
Dizes-me que tens os dentes a apodrecer, dentes castanhos da acidez do traço da uva madura,
que te estás a cagar para o aspecto que tens, pois a ucraniana com quem andas a foder, não quer saber do sofrimento que os teus olhos escuros e vazios estrebucham, porque o único interesse que tem é no prazer que o teu caralho lhe poderá dar.
Consigo te compreender quando me dizes que não és capaz de viver sem o vinho.
Juro que. Consigo.
Tanto tu como eu, ambos sabemos onde vais acabar, e não será a arrumar carros em Lisboa, como me disseste enrolando as palavras, a juntar trocos que vais estourar num tasco qualquer ali para os lados da Almirante Reis, tu que és rei sem reino, vais acabar na cova. E, porventura, será aí que encontrarás, por fim, a paz que te foge há tanto tempo.
Consigo te compreender, porque me revejo noutros tempos, envergando igual desespero, igual dor, igual destempero pela vida, igual desolação e passeios percorridos na indisposição infinita, o corpo dobrado para vomitar o que se acabou de meter e que já não cai no fundo do estômago que arde.
Vejo-te curvado sobre muros, agarrado para não estatelares no chão o rosto que já não tens, a cara nas paredes carcomidas, feições torcidas à força do esófago queimado e tu,
rei que és, nada saberás do que te sei.

Mas são assim os caminhos de cada um. Faz boa viagem, amigo.

Sia - Breathe Me

Be my friend.



quinta-feira, 29 de maio de 2014

diários

Hoje acordei com o telefone a tocar. Ouvi-o na distância a que o sono se me impunha. Estremunhado, atendi. Era a _________. Amiga próxima e querida. Perguntou-me se me tinha acordado, disse-lhe que sim, mas que não havia problema, que já era mais que tempo de estar acordado, só que a minha noite tinha sido difícil. Então, ela disse-me que a dela também não tinha sido nada fácil. Que esteve acordada até amanhecer, a ler dos diários que tinha escrito há imenso tempo. Acontece, que nalguns dias – disse-me – escrevi sobre ti. Há três ou quatro anos. Disse-me que, de alguma forma, lhe tinha feito companhia na insónia. Reportou-me para aquela época de miséria, desgraças, amores estilhaçados, crenças desfeitas, sonhos perdidos, desavenças entre queridos, noites brancas de desatino, noites em que nada parecia fazer sentido, desabafos íntimos. E foi assim que acordei, com a sensação boa de ter sido cúmplice desta noite inquieta, agora no presente, mas sempre com a __________ no coração.

quarta-feira, 28 de maio de 2014

segunda-feira, 26 de maio de 2014

23:35h

Fecho as portadas do quarto. Deito-me na cama qual barca fúnebre, altar de preces e lamentos gastos. Deixo-me ir no bulício das vidas, vidas inúmeras que tentámos envergar, mentindo nas palavras confusas e cindidas. Há gritos na rua, porrada entre bêbedos do tasco da frente, uivos de cães rafeiros, sirenes da bófia. O costume. A vizinha de cima geme pela noite dentro, mais um orgasmo, mais uma volta no carrossel com aquele namorado brutamontes que malha no ferro e que não diz bom dia a ninguém. O vizinho debaixo bate nos miúdos, enquanto a mulher estende a roupa gasta pela lixívia. A puta do lado há-de sair por volta das 23:35 para ir atacar a carteira daqueles que de dia maldizem mas que de noite e madrugada fora perseguem. Amanhã ou depois, há-de vir entregar o «Paraísos Artificiais» do Baudelaire que me pediu emprestado. E eu, à parte de tudo, declamo vidas perdidas, desfeitas em lábios que se esqueceram de seduzir, noites vazias, ecos em becos escuros nos ossos do esqueleto cansado.  

domingo, 25 de maio de 2014

votar

é como mandar uma rapidinha. Há um grande alarido à volta da coisa, demora um minuto e fica a sensação de dever cumprido.

sábado, 24 de maio de 2014

Dead Combo - esse olhar que era só teu

a casa

Olho pela janela. As luzes cintilam como olhos que piscam. Olhos que, demasiado tempo no escuro, perderam a habilidade de se manterem focados no que vêem. O caso é que nada vêem no escuro e, então, quando colocados perante a liberdade de luz, receio bem, terem perdido a capacidade de a aguentar. Então piscam e fecham-se, se bem que temporariamente. Olho pela janela. Lembro-me do Joaquim – o esquizofrénico do bairro. Não sei bem porque me chegou esta ideia. A ideia dele. Esqueço-o. Não é aqui que me quero centrar. 
Mas os olhos piscam-me na escuridão da casa. A casa sossegada e eu lá permaneço. Derrotado e caído. À procura de reagir, à procura de uma forma de não cair, mesmo já tendo caído. Inevitável é a capacidade de nos negarmos. Deito-me no sofá – ali – onde estou, só e perdido; por entre ruídos de carros que nunca terminam, a névoa da noite embrenhada de gases tóxicos e fedorentos. Se me cheirasse bem  – que faria? Um perfume, talvez. Mas não. Foi assim que fora decidido desde do dia em que, por via da necessidade aterrei aqui qual dissidente desesperado sabe-se lá pelo quê. Amor não o era, pelo menos – asseguro. Foi assim decidido. 
Tudo o que fiz foi nesse sentido. Sem saber, em todas as devidas alturas, fui seguindo à risca as indicações para não me falhar à tarefa. Fi-lo na perfeição. Nunca errei. Estou aqui nos erros de não ter errado, depois de ter percorrido cada metro, cada quilómetro – sem enganos. Há uma passagem na bíblia, e da qual gosto muito, que diz qualquer coisa como 

«os olhos são a lâmpada do corpo. Portanto, se teus olhos forem bons, teu corpo será pleno de luz. Porém, se teus olhos forem maus, todo o teu corpo estará em absoluta escuridão. Por isso, se a luz que está em ti são trevas, quão tremendas são essas trevas»

 - Mateus; era bem de se ver uma passagem que nos aconselhasse a via das escolhas rectas e íntegras, senão todas elas, nos erros dos erros…

quinta-feira, 22 de maio de 2014

coração atado

Desce por mim uma culpa quase vergonhosa de tanto me pertencer. De tanto me possuir. De tanto – meu deus – que não há fim, na mais dura das maldições me fazer sua.
Receio não me distinguir. Esta pérfida obscena, pela qual me faço trespassar, poderia muito bem ser enfeite de manto gelatinoso, que eu, inutilmente – assinalo –, jamais teria capacidade de despir.
Falta pois, se não faltar mais alguma coisa, a vontade que a faça estremecer, a ela, à culpa; estendida sobre mim, escorre devagar e vai sorrindo num estúpido frenesim.
Quando por me ser escopo, me chega à noite e eu, julgando-me pesado cansaço, pretendo estar entregue ao merecido descanso, eis que no silêncio disfarçado me chega o bulício da sua confusão. E sem apelo nem misericórdia, esta puta velha de olhar desprezível, leva, uma vez mais, a sua de vencida e sem demoras arrasta o meu coração atado madrugada fora. 

terça-feira, 20 de maio de 2014

...

Guardamos cá dentro tudo e mais alguma coisa, capas de revistas com vedetas de sorrisos trabalhados para rasgar corações, implodir estruturas de adolescentes que levam porrada mental na escola, velhos doentes e capazes de todas as molestas na esperança de cerzir uma juventude perdida e esgotada, guardamos tudo cá dentro, como se as paixões deixassem de ser paixões porque de repente o vento passou a soprar de outra direcção e, no fundo, não queremos saber do próximo para nada porque o que conta é termos a mão no dinheiro do nosso bolso enquanto que a outra joga bilhar ao sabor de estados de pornografia, animais e outras divindades de filmes rascos e deliciosamente obscenos. A civilização é um caralho de um fracasso, onde se destaca quem mira com olhos raiados de sangue a namorada do outro, enquanto a mesma se roça nos tomates de um terceiro, e já toda a gente deu voltinhas nas camas coçadas com quase toda a gente. Somos rotos, esfarrapados e omissos, queremos tudo sem desejar verdadeiramente nada.

segunda-feira, 19 de maio de 2014

sina

Nega as tuas trevas e negarás a tua verdade e essência 
Triste sina de quem se faz sem fazer 
Nas graças desprendidas e fáceis. No desfile inútil do que é - dizer-se vivo.

Stone Temple Pilots - no memory

domingo, 18 de maio de 2014

têmporas

Tenho as têmporas frias
À margem da tua ausência
E chego mesmo a partir espelhos
Por me detestar ver assim

Só.

sábado, 17 de maio de 2014

Mão Morta - ventos animais

sábados

Aos sábados de manhã, na pastelaria rica e fina, que é como quem diz pipi e cocó, juntam-se as famílias, principalmente as que vivem no condomínio onde a mesma se encontra. É o choro dos bebés, as correrias desenfreadas dos garotos em festa, as conversas entre pais, as trocas de «o meu filho isto», «a minha filha aquilo», e adiante...
Gosto de observar, ainda que de soslaio, estes encontros matinais e habituais. São quase sempre as mesmas pessoas que aqui vêm e toda a gente se conhece, nem que seja de vista. Às vezes, penso naquilo que elas, as famílias, poderiam escrever sobre mim; um tipo com ar ensonado, solitário, e que bebe dois ou três cafés, enquanto a mão direita segura um cigarro, porque a esquerda se ocupa em escrever sobre sabe-se lá o quê.

Que escreveriam?

sexta-feira, 16 de maio de 2014

«manhã submersa»

Ainda estremunhado, dirijo-me para o quarto de banho. A noite foi de naves espaciais, seres de um outro mundo, amigos próximos e amigos distantes, enfim, toda ela um cansaço. Por onde terá o meu espírito andado?
Visto-me mecanicamente, é assim há algum tempo. Uma camisa e umas calças de ganga e pronto para sair. Esqueço-me do pequeno almoço, comerei  mais tarde. Gosto de sentir a sensação de estômago vazio, fome, buraco negro no corpo cada vez mais magro.
Sento-me nas cadeiras da esplanada do café do bairro. Sempre as mesmas caras. Olho para o lado, e vejo uma mãe de volta do telemóvel. Obcecada percorre com os dedos o visor do aparelho, desligada do que se passa à sua volta, mas ligada ao mundo pelas ondas invisíveis. Na cadeira ao lado, está, presumo, o filho. Calado e olhar fixo numa torrada que vai trincando. De vez em quando olha para a mãe, mas a mãe está concentrada no telemóvel. Ambos, silenciosos, são habituais por estas paragens. E o cenário é sempre o mesmo. Dois seres tão próximos e tão distantes. 
Bebo o café e acendo um cigarro e, de súbito, sinto-me livre por ter o telemóvel para reparação e não estar agarrado a ele como uma lapa na rocha. 

quinta-feira, 15 de maio de 2014

o teu corpo

Sonho com o teu corpo. Não com o teu corpo «corpo». Com o teu corpo como mundo de um todo. De um todo teu. Sonhar é o que sei fazer melhor. Não sei nada sobre ti. Sei que, às vezes, nos vejo a dançar sob uma lua prenhe numa noite de verão qualquer a sul. Vejo o reflexo do mar como tela dos nossos movimentos; que para lá da imaginação fossem eternos. Sinto-te viva, quando teimas entrar assim, com os pés descalços na areia dos meus enganos, nessa tal noite de verão toda ela feita de sentidos rasgados. Nem conheço o cheiro da tua pele, mas sei que teria o resto da minha vida para me embrenhar nele. Conheço-te a voz, mas nem sequer sei se gostas do azul, ou se preferes outra cor qualquer. Chamas-me quando não tenho medo de me entregar, sabendo que ando aos caídos, sem rumo, sem sorte alguma. Podia cair em ti, se não fosse o resto que me come os restos. Sou carne pisada, hematoma feito de pancada, pele arroxeada, cicatrizes feitas e gravadas que contam histórias de precipício. Tenho por hábito escolher os caminhos mais difíceis e complicados, estou habituado a enamorar-me pelos impossíveis, pelos feitos indómitos e inefáveis. Sério. Conheço-me na aflição. Depois do teu corpo, depois destas viagens astrais que faço na minha cabeça mirabolante, surge-me quase sempre um sorriso de vencido, e com o esgar de desprezo por mim próprio, exclamo – que se foda tudo o que anda ao contrário. 

quarta-feira, 14 de maio de 2014

corda

Há tanto tempo que não me chego. Há tanto tempo que fujo do que não tem fuga. Há tanto tempo que persigo outro que não eu. Há tanto tempo que aguento com essa carga, esse peso que as fugas encarnam. Fujo, e tento esconder-me, mas o outro – este que escreve – não me dá qualquer descanso. De vez em quando chama-me. De vez em quando bate cá dentro, lá do fundo, lá de dentro de tudo o que não tem nome. De todas as coisas impronunciáveis. E esta solidão que ataca escolhe de forma cindida cada pensamento que massacra. Dominar. Dominar estes pensamentos destrutivos. Esta corda no pescoço que não se quer roer a ela mesma.

segunda-feira, 12 de maio de 2014

movimentos perpétuos

Estou ali assim. Sem me mover. Estático - completamente estático. À minha frente está um homem e uma mulher. Gesticulam. Ouço-os a rir. Gesticulam, como quem chama, como quem quer muito algo, como quem quer apertar, como quem quer abraçar. Sim - essa é a palavra certa. Abraçar - o abraço maior. Ouço-os. Riem-se. Chamam por um nome que reconheço, chamam por mim. Não sei porque o reconheço se nem me conheço. Não sei quem sou, nem onde vivo – mas reconheço. Não tenho nome mas tenho nome. Tenho um nome. Chamam-me e riem-se muito. Não sei quem são estes dois gigantes, apenas sei que sorriem muito para mim. Eu sorrio de volto. Solto sons desconectados e cortados na ânsia de lhes responder. Caio. Tento equilibrar-me. Uma e outra vez - vezes sem fim. Uma e outra vez. Caio novamente. Eles chamam mais por mim, gesticulam freneticamente numa alegria desmedida. E eu equilibro-me em evidente esforço e dou passos cambaleantes e inseguros. Até que os alcanço e em festa erguida levantam-me ao ar. Contentes. Apetece-me cantar mas ainda não consigo porque foi assim que com um ano de vida que comecei a andar.

sábado, 10 de maio de 2014

madrugada branca

Madrugada fora chegas-me pé ante pé. Sem te anunciares. Tem sido assim. A verdade é que tento esconder a verdade que já não quer ser escondida. Tento apenas, e falo comigo próprio como um demente sem crença ou salvação possível. No fim, ninguém se salvará. Não haverá paraíso, nuvens, céus, Deus ou alguém que nos estenda a mão sobre o vazio do espaço. Um dia o corpo arrefecerá.
A verdade é que me tens chegado, e tenho negado a tua face da maneira que me é possível negar. Mas falho sempre que tento. Tantas vezes falhei.
E tenho a sensibilidade a correr-me no sangue escuro e denso com o qual poderia escrever na folha esbatida a tua ausência. Tenho-te em mim e já não sei dizer que não, e muito menos pensar que não.
Madrugada fora chega-me a tua silhueta decorada por palavras que conhecem a foz de minha sobriedade. Ela é tua também. Desenho no ar gestos imperceptíveis na busca do significado de tudo isto. Recuar, se for preciso. Recuar, sim, mas até onde se não saio do mesmo lugar? Deste quarto escuro onde penduro a roupa que vesti com cuidado de manhã, para que me visses como uma pessoa normal, e o que é o normal quando tudo nos enche e depois se nos falta, esgotando saliva, tutano e osso? Temo que me falte o rosto quando te vir novamente. Temo em não te chegar como me chegas, clara e objectiva. E as palavras que queimam e que tanto tropeçam na língua quente, na ânsia de ser crepúsculo no estio do deveres. E que deveres?
Batem as notas nos tímpanos, bate a música na qual poderia viver se não fosse esta necessidade de ter que comer, dormir, enfim – Deus que não acolhes ninguém – descansar.
Madrugada fora chegas-me e mostras-me que os caminhos são feitos de encontros aos quais falhámos. De encontros aos quais não aparecemos. E a pedra de ara que deixámos sem ninguém para testemunhar fosse o que fosse. É branca – a hora. A hora de esconder a verdade que já não pode ser escondida. Esmoreço na insónia que tem o teu nome. Amanhã dormirei vivo e serei fantasma de mim mesmo contigo peso sobre ombros. Talvez não me incline sobre as canelas exaustas. Amanhã, talvez, nada.

sexta-feira, 9 de maio de 2014

antídoto

Podes fugir e podes adiar as tuas origens. Podes escondê-las e podes até mesmo manipulá-las. Podes fazer isso tudo. Mas, a verdade - e ela nem sempre te agrada à vista -, a verdade é que a tua natureza está sempre dentro de ti. Os dias felizes que viveste e os que se extinguiram. Os teus pais, amigos, conhecidos, até mesmo os desconhecidos que se te cruzaram, construíram-te sobre essas fundações. Está tudo dentro de ti. E tu podes correr à volta das tuas próprias ilusões, disfarçar o que está à tua frente como bem te aprouver. Decorares o palco com as tuas maiores serpentinas coloridas das virtudes. Podes fazer isso tudo. Mas jamais, em condição alguma e sobre qualquer manha, podes tentar enganar o teu coração. Ele tem o antídoto para todos os venenos. Até mesmo os teus. Aqueles que, elegante e sorrateiramente, lhe tentas injectar. Falharás, contudo - garanto-te.

quinta-feira, 8 de maio de 2014

noite

À noite, quando me deito e tu já dormes, fico por ali assim. Só a olhar para ti. Depois, passo as mãos pelos teus cabelos quentes. E ali fico a urdir os teus sonhos na escuridão. Então, os teus sentidos despertam ao de leve e suavemente sorris. Amanhã não te vais lembrar que te acariciei - sussurro ao teu ouvido. Tu acenas que sim - que sim, que te vais lembrar -, diz-me a tua expressão tranquila. Mas eu sei que não e, ali só comigo, fico mais um pouco a descobrir, mar, terra e lua nos teus cabelos. Sinceramente, confesso que prefiro que não te lembres; que na fronteira e limiar do teu mundo de sonhos gigantes e o quarto sob a luz ténue, as minhas mãos te disseram que sou teu.

imortalidade

Um dia, mais tarde, gostava de ser colocado numa câmara criogénica. Se por um lado me aborrece a ideia de uma imortalidade amorfa, por outro, a ideia de uma fragilidade mortal assusta-me. Talvez, debaixo de um manto gelado, a morte não me assombre e o fado eterno não me aborreça. Ficaria ali assim. Sem temer e entediar-me com coisa alguma. E que se fodesse a realidade.

quarta-feira, 7 de maio de 2014

voluntariado

Faço voluntariado ao serviço da junta de freguesia, que isto de estar desempregado não é nada fácil. Uma vez por semana, leio contos num lar de 3ª idade, ou de seniores, se preferirem. Actualmente, estou-lhes a ler «Histórias Maravilhosas do Oriente» da autora Pearl S. Buck. Acontece que ontem encontrei uma psicóloga muito simpática do IEFP com a qual estive à conversa. Quando se despediu de mim disse-me: também quero chegar a velhinha e ter um jovem a ler contos para mim. São estas coisas, para além dos comentários que ouço no lar, que enchem o coração e que me fazem sentir de estar a fazer algo por alguém e, ao mesmo tempo, por mim. Amanhã vou acompanhar os «meus» velhinhos à feira de Maio e vai ser óptimo.

terça-feira, 6 de maio de 2014

asa negra

Entra no átrio o coração de asa negra com missão de ceifar. As paredes estão podres, o estuque vai caindo lentamente. As mulheres gemem, os bebés, aos seus colos, choram e ali há o desespero e a doença como último perdão. A súplica suprime a dor. Entra a asa negra com o martelo na mão. Juíz d'alma em fraco coração. No ar paira o odor acre de urina, vómito e nenhuma resolução. Alguém vai estatelar-se, alguém vai morrer, alguém escreverá, em vão, a sua despedida deste mundo inglório e fútil. E ali estou. Sem saber que pena é aquela que os vidros teimam em espelhar. 

segunda-feira, 5 de maio de 2014

tudo a piorar

Por mais que digas que sim - que vai melhorar - sabes que isso não vai acontecer. Não vem aí nada de bom. O amor não cura nem traz felicidade. Aquela por quem te apaixonas nunca te salva, porque tu é que te precisas salvar. Aquela por quem te apaixonas, está apaixonada por outro.
O rei que é de espadas e que devia ser copas, estraga-te a mão e leva-te mais uns cobres para o bolso de outro. A questão é que - tudo tende a piorar.
Trabalhas mais e recebes menos. Acreditas que as despesas vão descer, quando na realidade elas aumentam de forma inversamente proporcional ao poder que o teu corpo poderia ter - ao poder que o teu corpo tem para poderes trabalhar mais de 10 horas.
O teu corpo vai entrar em exaustão. Vai desidratar-se, enquanto as mulheres ficam mais bonitas e tu mais velho. Nada de bom virá por aí e não tardará a hora de te veres sentado num banco de jardim a atirar milho aos cabrões dos pombos, que antigamente eram inimigos mortais por te cagarem o carro, e a assobiar às gajas boas de 20 anos, tecendo pensamentos lamuriosos de como era bom no tempo em que acreditavas que nada disto seria assim. Que a tua vida seria boa. Mas é tudo mentira, a tua ilusão criada como Deus para te suportar onde, um dia, julgaste ser mais pequeno e, pior que tudo, sabias ter razão.
Tudo é mau e tudo se destrói. Não tarda estás velho, com a casa a cair de podre, a fazeres as tuas necessidades em alguidares porque já não te estás para arrastar até à casa de banho, enquanto esperas avidamente a chegada do carteiro com o cheque minúsculo e roto da reforma que tu trocarás por uns belos shots de bagaço e tabaco de enrolar.
Gosto de pensar que sou bipolar e que me dá para isto e que amanhã acordo a pensar que sim - que tudo é bom.

domingo, 4 de maio de 2014

eu transpiro estilo

Olha-se à volta e percebemos que anda toda a gente enganada. Hoje em dia, damos primazia a coisas que nada têm a ver com verdadeiro propósito de andarmos cá. Coisas fúteis e inúteis. Coisas que não servem para nada a não ser mera ostentação. Normalmente, são as pessoas mais inseguras e as que precisam de uma qualquer forma de reconhecimento que admiram e desejam essas coisas. Nem sequer se questionam sobre a forma e o motivo desse possível reconhecimento. Esquecem-se as verdadeiras amizades, preterindo-as por aquelas do género «palmadinha-nas-costas-tu-és-muito-fixe-eu-não-te-contrario-em-nada-nem-te-digo-aquilo-que-deves-ouvir-mas-só-aquilo-que-queres-ouvir.» Esquecem-se valores como a solidariedade, entendimento e partilha porque o importante é parecer-se cool. Por entre estas cortinas de comportamentos, acaba por ser difícil abrirmos as nossas próprias cortinas, de maneira a admirar o esplendor daquilo que é realmente a essência da nossa existência. A janela aberta não esconde nada, mas o segredo está mesmo aí, em abrir a janela - a janela do coração. E atenção, que falo de mim e do lugar que por vezes também ocupo.

sábado, 3 de maio de 2014

estética

É preciso ser-ser estúpido e ignorante quanto à noção de perfeição. Um estado que não condicione a escolha da esferográfica, caneta de tinta permanente, lápis ou pena. 
É preciso ser-se ignorante para com tudo para que, no fim, a ideia de felicidade sobre algo, possa, pelo menos remotamente, existir. Então, por que motivo forças tanto a tua mão?
Relaxa os músculos e escreve mal. Deixa. Deixa-te. Deslizar suavemente sobre o papel, e arredar para longe, bem longe, essa ideia de estilo pré-concebido, estética nascida sabe-se lá onde e sob que parto, ou nome de parto alguma vez dito ou pronunciado. 
Esta é a tua voz escrita sobre fogo, mar, terra e água de ti. E é nela que tens de confiar. Confia. É nela que tens de viver e não debaixo de uma tela concebida única e exclusivamente para dar um prazer excelso a um outro olhar menos discreto. Teu ou não.
Vive-se no belo. Suga-se tudo o que nos apraz, olhar, coração e alma. E nesta sempiterna contradição, porque o que não vemos raramente se expressa no nosso interior, não rompemos com o que há a romper, não rasgamos o que há para rasgar. A primitividade de outras eras.
Três da manhã. 
Sono nenhum me atinge. Fico por aqui. A contar arrependimentos, de segundos que não durmo, de horas em que não descanso e que, amanhã, me vão pesar como fardo de chumbo.
Hoje sou feito disto. De desassossego. 
Três da manhã. 
Hora de fingir que não me preocupo com a estética. Porque sim, preocupo-me.

sexta-feira, 2 de maio de 2014

sonho

Esta noite trocaste-me as voltas e, inusitadamente, apareceste-me em sonhos. Sem convite, sem te anunciares. Desorientas-me - digo-te, agora acordado.
Seguraste-me as mãos e colaste-as junto do teu ventre. Disseste-me que ia passar, que tudo iria ficar bem, que iria ser tranquilo, olha para mim agora, agora que até acredito. 
Acendo um cigarro. 
«Tu-do bem». 
Não sei a que te referias, conheço pouco do tudo e muito menos do bem. Quis compreender; quem eras e ao que vinhas, se é que vinhas com algo. Um dia, talvez me expliques as tuas palavras oníricas, com teu tom de voz a roçar um reino celeste. Todo um reino desconhecido. Sorrias.
Não me recordo do que trazias vestido, recordo-me, sim, da brisa que te acompanhava o corpo. Seria possível que viesses nua? 
Despido fiquei, de manhã, ao acordar e reparar que as minhas mãos repousavam em mim e não em ti. Quem sabe se me chegas outra vez hoje.
Ou talvez amanhã. Não te atrases.

segunda-feira, 28 de abril de 2014

as pessoas já não têm quem as ouça

Aqui há dias, bebia café com uma grande amiga minha quando fomos interpelados por uma senhora. Pediu-nos uma esferográfica só para «tirar aqui nota de um número de telefone». Nem eu, nem a minha amiga tínhamos connosco o objecto em causa e pedimos desculpa pelo facto. Somos especialistas em pedir desculpa. Por tudo e por nada - desculpa - talvez porque carregamos a culpa avidamente às costas. Mas a senhora não se ficou por aí; disse que já não vinha à «vossa cidade» há muito tempo, perguntou-nos, também, onde se poderia ir ao cinema, que uma amiga vivia ali perto mas que não atendia o telefone. Depois de termos dado a indicação solicitada, ainda ficámos a saber que um sobrinho tinha vindo há muitos anos estudar para a «vossa cidade», e que não tinha gostado das pessoas mas que nós «éramos uns verdadeiros amores». Ao despedir-se de nós, ainda perguntou onde era o Turismo, e a minha amiga anuiu fornecendo as indicações precisas para que a senhora não se perdesse. Enquanto se afastava, pensei que poderíamos ter convidado a senhora para se sentar na nossa mesa e, quem sabe, ouvir mais algumas histórias simpáticas, porque lhe percebi a vontade de conversar. À noite, quando me deitei, recordei o episódio e adormeci com a ideia de que as pessoas já não têm quem as ouça. 

domingo, 20 de abril de 2014

...

Encontro uma mesa livre na esplanada e é onde acabo por me sentar. Feito o pedido, olho à minha volta; um casal na casa dos cinquentas desperta-me a curiosidade, pelo simples facto de não falarem um com o outro. Vão bebericando dos seus copos de vinho, e, de vez em quando, os olhares encontram-se e sorriem. Partilham o silêncio de forma cúmplice. E eu penso: o Amor também é isto, dois copos de vinho ao início da tarde, olhares de intimidade, um prato de amendoins, e a praça como testemunha da amizade que transpiram.

domingo, 13 de abril de 2014

imaginar

Imagino que estejas feliz. Que os teus domingos sejam feitos de sorrisos e doces prazeres. Que ao percorreres os quilómetros que nos vão afastando, estejas em paz.
Imagino que estejas feliz. Que te agradas com quem te agrada. Que chegas a casa e que nunca existi. Que te esperam.
Desligas.
Imagino que estejas feliz. Que não serei parte do teu mundo, que os últimos tempos não nos consumiram como chamas em gases tóxicos.
Imagino que sim. Que estejas feliz. Que amanhã a tua roupa não terá o cheiro de meu perfume que, agora, já te enjoa.
Desligas.
Imagino que seja assim. Que estejas feliz. Feliz por não teres apostado as fichas todas no nosso amor. Quando chegares ao teu destino, o cheiro a casa, outro cheiro que não o meu.
Imagino que aos três anos de trocas de nós, fluídos, saliva, e medula, haverá uma lua de sangue a celebrar a vida ou a morte em. Em quê?
Imagino que estejas feliz. Que a serpente que não nos se entrelaçou nos dedos seja a tua vantagem, mas vantagem de que jogo?
Imagino que sim que. És feliz.

quarta-feira, 9 de abril de 2014

é ali

dentro daquela garrafa que respira o miúdo. Tosco, desajeitado e pouco racional, espera algo que não sabe que forma tem. Apenas possui crenças que, por vezes, são aniquiladas por um reflexo de vidro escuro. Dentro daquele espaço, vai construindo o seu mundo, também este, desajeitado e imerso no caos. De olhar nos aviões que aterram algures por entre as torres de cimento, encolhe-se sem saber muito bem que tecer. Já há muito que se apercebeu que o sol surgirá novamente, amanhã por assim dizer, peneirado por aquela pequena abertura chamada "gargalo". Sabe que a fronteira é limite, e que a madrugada da vida assassinará sempre a sua noite. Não há gente que o encontre ali. Mergulhado, dentro da sua garrafa, bebendo a sua própria urina. Um dia morrerá, sem conhecer as coisas que haviam na mesa, onde a sua casa-garrafa há muito se fazia resplandecer.

sábado, 5 de abril de 2014

os Faustinos

Hoje, no triste enaltecer de mais um feixe solar esparso ou inaudito, lembrei-me de uma família que vivia muito perto de mim. Eu devia ter uns, pelo menos, oito anos quando conheci a referida família. Lembro-me bem de vê-los passar -  vestidos de negro, olhar cabisbaixo, olhar próprio de quem lambe pedras, de quem não quer ver um caminho que existe à frente, próprio de quem já não acredita em qualquer caminho, próprio de quem já não sabe e, muito menos, sente o prazer de chegar a casa. Eram os Faustinos. Desde sempre me ficaram no coração. Ficam no coração todos aqueles de quem sentimos compaixão, argumento devido e mais que sentido de quem só sabe o que é espalhar pena. Sentia pena por aquela família e pelo triste desenrolar que era aquela existência em conjunto. Senti – confesso, descabida e advertidamente. Lembrei-me deles. Os dois filhos mais novos, recolhiam às portas todo o cartão e mais algum que encontravam. Vendiam-no a oito escudos e cinquenta centavos ao quilo. Passavam à minha porta com um carrinho verde. Tinha duas rodas e um tabuleiro onde depositavam o cartão para ir vender sabes-se lá a quem. O mais novo chamava-se António e tinha um dente que não tinha. O irmão a seguir era o Joel. Eram onze irmãos. Fortes e robustos, devido a quem vive na pobreza de casa, pobreza de alma e corpo. Comiam muito pouco, pois muito não havia, e muito menos o que se poderia dizer de suficiente. Viviam assim: a passear o carrinho carregado de cartão, para vender a um filho da puta qualquer que os haveria de extorquir até ao tutano magro e submisso. Nunca me esqueci deles. O irmão mais velho matou-se – o David. Diziam que se enforcou. Também dizem que quando uma pessoa se enforca que se vem. Ejacula. Urina-se. E tudo o mais que enoja os mais sensíveis. Foda-se, David. David derrotou Golias. Por que não tu? O cartão, mesmo molhado, também é difícil de esquartejar. E, por entre silvas, lá iam os irmãos a empurrar o carrinho. Era assim que os via. Hoje, o carreiro de silvas e amoras nada mais é que uma estrada. Passam carros. Há uma urbanização, um condomínio fechado, uma pastelaria com bolos ricos e para ricos. Dos Faustinos nunca mais soube nada, com excepção do António. Vi-o aqui há uns tempos numa discoteca onde há o baile de velhas. Fui lá porque gosto de ver onde me vejo no futuro. Estava com uma loura gorda e pagava-lhe bebidas. Beijava-a intensamente. Estava feliz – via-se-lhe no olhar. Fiquei contente. Saí já torto daquele antro de engate, sozinho, e a pensar que devia ter recolhido cartão quando era mais novo.

sexta-feira, 4 de abril de 2014

as perdas

Todas as perdas que testemunhámos esvaziaram-nos um pouco mais. Ora são as mortes do corpo, ora são as partidas sem partidas de alma que nos sugam mais daquilo que nos faz. Na verdade, o que nos preenche está repleto de tudo o que perdemos; a essência é assim - não se «enche» com algo que já tem. Quase sempre a troca funciona desta forma – em défice.

quinta-feira, 3 de abril de 2014

mulheres apaixonadas

A sombra de uma mulher apaixonada é imensurável. A projecção que a luz faz, ou aquilo que oculta, é um imenso horizonte sem pontos cardeais definidos. A sombra de uma mulher apaixonada é maior que qualquer sombra de uma mulher que não se abriu para o extremo oposto de uma qualquer morte. Na ausência de uma dúvida plausível de ser falada, a sombra de uma mulher apaixonada envolverá em sombras a mulher que não se apaixonou; cairá também sobre a montanha de expectativas que entretanto cuidou de erguer. Essa sombra mergulha na sua própria sombra. Sem intervalo de tempo certo e definido, Norte, Sul, Oeste ou Este, serão meros sopros sem significado algum, porque para uma mulher apaixonada, o lugar onde se encontra simplesmente não existe no mapa daquilo que contempla. 

quarta-feira, 2 de abril de 2014

nano conto #1

Benedita nunca conheceu os prazeres que só uma mulher lhe poderia proporcionar. Conheceu alguns homens, homens capazes de lhe leiloar o corpo. Benedita cresceu e viveu. Porventura, aproximando-se da sua morte, não saberá quanto lhe valeu o corpo. 

segunda-feira, 31 de março de 2014

chuva

Chove torrencialmente. As portadas das janelas abanam impetuosamente conferindo terror a esta casa. Fumo o meu cachimbo, ponho mais um tronco na lareira e acendo o candeeiro a petróleo. Não há-de faltar muito para que a manhã chegue e a luz mostre os estragos da noite agitada. Sento-me à mesa e começo a escrever. Devagar. Palavra a palavra, linha a linha, esboço um texto qualquer. Podia ser uma história sobre ti, mas não, hoje escrevo sobre mim.