sexta-feira, 31 de julho de 2015

libertad

Cultiva em ti a paixão pelas coisas não nascidas, o absurdo de pintares a face com as cores das tribos índias, o verão índio e selvagem interminável dentro de ti, cultiva a partilha sem esperança ou expectativa de qualquer retorno, nem uma molécula de atenção ambiciones, dorme profundamente seis horas por dia para que de manhã as olheiras não te sejam peso e espelho da noite de fuso, apanha sol muito sol, vive as coisas simples de forma simples, diz para ti as vezes que forem precisas: «KISS» – keep it simple stupid, cultiva os pensamentos o suficiente para estares ciente e consciente das tuas escolhas, mas pára quando os mesmos te forem espiral tortuosa para que não te sintas cansado e obcecado, lava a louça e a roupa com um sorriso porque dos pratos te alimentas, e as roupas cobrem o que é sagrado e ficam sempre bem espalhadas à toa no chão do quarto com quem as tiras, escreve cartas, compra envelopes, selos e escreve no destinatário o nome de um amigo com o qual há muito não falas, envia-a sem hesitares, sorri muito, dança nem que seja sozinho em casa, vê o mar adormecido na profundidade da madrugada, mergulha nu nas ondas, deita-te na praia ainda que chova, sente o vento na cara e diz agradecido – que bom estar vivo mesmo que te sintas a maior merda à face deste planeta maravilhoso -, bebe muita água, adopta um animal, um companheiro que te ensine a cuidar de alguém e que te seja fiel, planta não uma árvore mas muitas e abraça cada uma delas, areja o quarto mas nunca faças a cama ainda morna dos corpos dormidos, vê filmes estúpidos que te façam rir, vê filmes pornográficos e faz sexo, paixão, amor, desgraça íntima ao ar livre, lê banda desenhada, calça uns ténis rotos e vai a uma festa qualquer onde possas cagar na puta do «dress code», não laves os dentes mais do que dois minutos seguidos, fala menos e ouve mais talvez por isso tenhamos dois ouvidos e só uma boca, beija muito para que não deixes que os teus lábios sequem, confia na vida, no teu deus na forma como o vês, no universo, na bruxa, no padre, amuleto ou caracol, mas confia de coração, sê prudente e preservante, mas não te esqueças de partir um vidro à pedrada pelo menos uma vez na vida, bem como andar à porrada por uma estupidez qualquer para que percebas que a violência não singrará em nada e que o teu corpo não te agradece as feridas, escolhe os teus amigos não por serem bom conselheiros, mas porque te abraçam quando precisas, e te dão nos cornos na mesma medida quando deves levar, viaja com eles o suficiente para quererem voltar contigo novamente para casa, cozinha bastante, não há maior prova de amor que presentear alguém que estimas com um prato elaborado com dedicação, ri-te se no fim estiver insosso ou salgado, não leves as coisas demasiado a sério deixa isso para quando te chegar a morte, quando te derem algo nem que «só» sejam palavras diz agradecido em vez de obrigado, não o és a nada e muito menos te sintas na obrigação  de dar o que quer que seja em jeito de pagamento, e, por último, 

esquece toda a merda que leste, e faz as coisas como te sentes melhor e à tua maneira.

quarta-feira, 29 de julho de 2015

estrela

Chegas-me quatro anos depois daquele dia em que te conheci. Entras como se conhecesses os cantos da minha casa. Olhos vendados e ainda assim o teu tacto encontra-me sem demoras, apelo e agravo. Trazes contigo o calor morfina, o mesmo com o qual não me urdiste no tal dia que vive agora em mim e no qual nos cruzámos. E vêm os fragmentos.

Um final de tarde de sábado, ali na pastelaria João XXI na esquina com a Augusto Gil. A L., esquizofrénica do bairro, está sentada na minha mesa. Diz-me, pela centésima vez, que não aguenta mais que o pai e o irmão a controlem; que contem o dinheiro até às moedas «pretas» para que não possa beber, e, mais tarde, aparecer com homens em casa. Coisa que ela – diz – fazer muitas vezes quando eles não estão. Diz-me que a Olanzapina que toma lhe dá uma ternura de abraçar céus e que se sente um animal domesticado, mas que, de manhã, lhe apetece beber um copo de vinho «Flor das Tecedeiras» porque a recorda os bancos de jardim junto aos ciprestes do Júlio de Matos. Tentar respirar – digo – enquanto vou bebericando do meu Bushmills. Ela responde: dá-me um gole, ao que digo que não vou ser cúmplice da manipulação dos químicos que lhe estraçalham as veias. Está bem – suspira – gosto de ti porque falas comigo. 

O meu telefone toca. É a C. Pergunta-me se quero ir jantar com um grupo de amigos que se reúnem frequentemente ali para os lados da Guerra Junqueiro. Mas hoje é em Santos, e a seguir ir «dançar a qualquer lado». Hora marcada. Banho tomado à pressa porque a L. me demorou com a versão estendida sobre o processo de fabrico do azeite, cigarros no bolso, mais um escocês que aterra no estômago e apanho o metro.

Estão todos. Mas no meio – estás tu e um rapaz que não conheço. E tu olhas para mim de fugida, sorris, e voltas à conversa do outro. A C. arrasta-me para junto de vocês e diz – este é o Fernando. Tu olhas, beijas-me e dizes – Sou a N. e este é o D. Junto-me à conversa que a C., sempre diplomática, já está a gesticular e organizar os restantes. Vocês falam de trabalhos gráficos, agências de publicidade, fadas, fotografia a preto e branco de corpos nus, instalações artísticas debaixo da ponte 25 de abril, e o caralho mais velho, quando, de súbito, me perguntas – que pensas tu acerca desejo? e sai-me qualquer disparate como: todos os corpos com as devidas condições de exposição e entrecortados pelas trevas, podem despertar o desejo, nem que seja um corpo de 120 kg. Eu, no meu podre maior. O D. diz que tenho tiques femininos e pergunta-me se sou gay. Digo que se o sou que ainda não o descobri. Tu olhas-me e sorris. Voltas aos seres especiais que voam e aos cavalos selvagens que dizes respirarem-te no peito.
Entretanto, a C. traz um charro que circula entre nós no sentido anti-horário. Deveria ser um sinal - penso, e quando chegam as seis da tarde, a minha vez portanto, dois bafos profundos e, sentado na minha planície de enganos, estendo a mão para o J. que diz: mato. Tu ofereces-me uma cerveja e eu recuso porque sou cagão – digo - Corona ou Desperados. De qualquer maneira hoje a minha rota contempla a espiritualidade escocesa. 

Jantamos. Depois, alguém grita: Miradouro de São Pedro de Alcântara. Outro grita Lux - mas é cedo – replica um terceiro. E não sei bem vinda de onde, do Vietnam se calhar, chega a S. que eu conheço de outras guerras de lençóis, aos quais fugi assim que pude, porque fui cabrão e a usei e ela diz: N. – tu conheces este traste? Conheci-o agora. Afasta-te que este não te traz notícias que queiras ler. Leva-te para um canto, e vejo-a esbracejar muito e virar-te por duas vezes as costas, mas a voltar-se para ti e a agarrar-te pelos braços como se te quisesse contagiar com uma doença qualquer. Voltam as duas. E eu digo – Lux, não obrigado. Convido-te para vires ver a vista da varanda do meu quarto. Tu não me conheces – dizes – queres foder-me, não é? Dizes que não e nisto o J. chama-te para irem mandar um último risco supersónico dentro. Tu vais, rematando: querias fazer o mesmo que fizeste à S., mas eu prefiro o azul do que o cinza e amanhã viajo para o Perú.
Fico especado a olhar para o teu corpo esquálido, tortuosamente apetecível, que desaparece por entre a multidão, tortuosamente indesejável, enquanto digo para mim próprio: fodas-se, não percebo muito bem estas mulheres estranhas.
.
A branca é uma merda.

Acendo um cigarro, bebo um copo de rajada, e depois outro, e ainda um último que será o primeiro? Despeço-me da C. e do D. que ainda me pergunta se não quero ir «dar uma volta» com ele. Sorrio. Outro dia quem sabe. Chamo um táxi e o tipo pergunta-me – para onde? Passerelle na Óscar Monteiro Torres, por favor. Acabo a noite a ver mamas e conas coladas no varão. Corpos suados das eternas contorcionistas da indústria dos alumínios, coleccionadoras dos cromos do champanhe. Tiro umas fotos que não devo e sou convidado a sair. Despeço-me da Romena das tranças. Caminho para casa, uns duzentos metros à frente, talvez. A L. já tem a luz apagada. A Ketamina já lhe deu asas no sono, penso. Subo as escadas, o cabrão do senhorio que não manda arranjar o elevador. Atiro-me vestido para a cama de cacos e de espinhos fodidos, contos de horrores na penúrias da pobreza de espírito e recordo-me das tuas palavras: queres foder-me, não é?

Quatros anos depois, vidas ao ar, mundos percorridos, países viajados, outros odores, outras trocas, voltas e espirais celestes, mancebos, corruptos, chulos nos antros, as empregadas da limpeza, as subidas solitárias do alto da Algés, porque o Sr. Juan era um excelente psicólogo de balcão, Sintra, as bolas de Berlim na praia verde, o manta beach, as bifanas de Benfica, o Batucada, os encontros literários, as peças do Turim, actrizes em festas, casas transformadas em circos, autênticos arraiais populares na vertigem de ir ao fundo fé promiscua e decadente, piscinas onde nadámos nus debaixo das noites concupiscentes, toda a parafernália de auto-estradas percorridas de madrugada, o desmaio junto aos bombeiros, depois disso tudo, entras sem eu dar por ela, e visito-te sem saberes, também, e fico a saber que é uma fotografia na qual tropeçaras, que te traz à cabeça que afinal não fui tão parvo e indiferente, depois disse tudo e de horas inteiras a encaixar as peças, chegarmos à conclusão que 1+1 são sempre 3.

Hoje, no meio de um verão sem início e sem fim, dizes-me: vem ter comigo e em vez de me foderes, fodemos por amor os dois, lentamente, pode ser?

sábado, 25 de julho de 2015

câncer

Vieras outra vez – como me disseste que virias. Vieras uma vez mais, com o julgamento, com a superioridade de quem se despe e se volta a mascarar, com a inferioridade esboçada para seres maior. Agarra-te e cola-te ao que quiseres. Tu – como anjo de apocalipse de plástico ou cera que se derrete. Tu – com o braço maior da tua podridão. Tu – como meu ser nefasto, acho que te amei na profundidade da minha doença hereditária. A faca desmedida a pingar o teu sangue – sangue de mim. Não me vens. Alimentar-te-ias deste meu açúcar, deste meu sal, deste meu tecido esponjoso; tu sabes que sim. Ainda teria de ser teu - foda-se, nem que fosse en la  muerte. No cruel sentimento de que haveria outro dia para mim a seguir, haveria? Dir-me-ias que não. Dir-me-ias que estabeleces a ordem confusa de sinas com que me foras tecendo, à tua maneira portanto. Dir-me-ias que serias tu, sim tu, que me irias dizer que o inaudito movimento último, seria sempre teu – proclamado. Até ao fim. Como ligadura ou gaze sem qualquer utilidade. Como vazio a que me propus, quando te fui qualquer coisa, sem ser vida num cindido gesto a que me remeteste – como pude sentir que me foras e que não vieras em vão? Cajado de enganos como fantoche de pratas, sempre a mesma merda. Incinerados os meus filhos, mortos e carcomidos no teu rasto que a prosa, maldita de mente fodida, tem os dias marcados pelas chamas. Nesta eterna corrida para a estúpida da felicidade - murmuro - deixo-a de leve para os outros. Como boca caída – talvez, ainda. Dir-me-ias assim que me invadisses, porque eu sei – sim, sei que o farias - dir-me-ias assim – acabou por hoje, mas quero que voltes na terça ou quinta-feira para te consumir outra vez. Sei também, que me manterias cativo e que me violarias na tua falácia, com a teu isco preferido - «sempre». Sabia que aqui chegarias, não sem antes de saber, que aí, e minha amiga agora que te chamo, que aí voltaria bem lá atrás onde me prometeras que eu teria de ir. À ilusão do que vivi – onde tu e eu nos encontrámos para me dizeres que de alguma forma morri. Morreria por um se. Morreria por um talvez. Vieste tu assim – destemida e mutante. Vieste tu assim, aqui no rumor e no silêncio dizer-me que nunca nasci. E eu acreditaria, se fosse o inútil de outras horas profanas. Insurge-te, mais uma vez. Por muito que te revoltes e que me apontes ao chão - não. Ficar-te-ei indiferente. talvez, vá para a esplanada da minha praia favorita ler o Paraíso Perdido do Milton, com uma chávena de café e um maço de tabaco ao meu lado. E, para que saibas, não preciso de mais nada.

quarta-feira, 22 de julho de 2015

apêndice

E depois, numa ascensão sem gravidade, vem o teu corpo moer-me e desfazer o pouco que já sou.
Rastejas sobre a razão que a memória da víscera tenta omitir, da tua boca, portanto, nada mais que o silêncio fodido. O costume.
E eu, ali, sopro esbatido, fantasma com bilhete comprado das imagens pornograficas, de cus e mamas que oscilam em delírio, desfiles mentais de proezas nunca conseguidas, triste e cómico, na mesma medida.
Profundo no pesar, vergo perante a realidade que asfixia, vergo por nos olhar e parecer-me que somos personagens de filmes diferentes. Desses - bucólicos - onde os corpos só se tocam no Inverno, à lareira.
E sem pedir licença para sair, levanto-me do sofá onde estás como estátua esculpida e bato com a porta. A cadela solta um latido, como um uivo de morte, sabe que não volto. Meto as chaves na ignição, arranco e acelero. Na rotunda, chamo filho da puta a um gajo que se atravessa à minha frente. A noite vai longa, a lua já se foi, ruas desertas, o vento rompe pelos vidros abertos e eu grito para a estrada nacional onde as putas atacam: triste ou feliz, sou o gume da faca que corta o apêndice — tu.

segunda-feira, 20 de julho de 2015

descolagem

Se ao menos eu soubesse que este sangue, este meu sangue que carreguei até aqui e que agora se derrama, não me roubaria as minhas histórias – se ao menos eu soubesse -, poderia tentar por uma só vez que fosse ser alguém. Talvez pudesse aspirar à minha eternidade. Serenamente - penso. Levam-me, em rasto lento e cadente, os dias e tudo o que agora de mim se escoa. Mas poderia não ser tão lenta esta morte que me urde?
Que o que se rasga num determinado momento, jamais se volta a unir. Apenas fica. Desfeito – mastigo – para ser esquecido. E continuo aqui; olho para o meu corpo, jogo de pescoço, pernas, braços, mãos e dedos que desfiaram com destreza, mas já não o reconheço de ser encarnado noutro tempo. Pequena rapariga de sonhos gigantes - caramelos que se saracoteavam delicadamente e envoltos num manto de saliva  apenas, e só, abrigo de boca desejosa de vida a conhecer. Neste tempo, este que não meço, cada dia desvela uma romaria dolorosa sem lei nem passo certo, e descobre tantos outros  ancorados, já sem nome ou forma, no pó de um canto recôndito qualquer que não sei saber visitar. E é assim que os sinto. Escorridos das entranhas. Noutro esgar, não mais sóbrio mas que me atrevo enquadrar, vem até mim a criança que esfolava os joelhos nas calçadas de pedras brancas e polidas, que um sol de Agosto lambia avidamente. Não me sinto já; não me concebo e, por este solene engano de mim, devo estar, como já o disse, a esvair-me. Que o que se rasga num determinado momento, jamais se volta a unir. Afligem-se os cheiros desses dias, dias roubados a uma morte de cristal frágil e silenciosa de sentidos. Estremeço. A minha menina – sussurrava a minha mãe. Mãe - aceno perpétuo deste meu Deus impressão de luz. Por aqui fico à espera. De um prolongamento. De uma corda que se estique. Fico. À espera que numa hora súbita pendurada dos céus, se esgueire a ilusão de cor em ondas vítreas e que, pouco a pouco, na vontade de resgatar a vida, descubra se teriam sabor as lágrimas daqueles que me amavam quando se me chegou a hora de partir. Nunca morri. Apenas cresci. Mas não digam a ninguém porque é segredo e os segredos são como rios de sombras numa tela perdida de uma parede num lugar qualquer. E lá, lá ninguém mos rouba. Lá— são todos meus.

sexta-feira, 17 de julho de 2015

instantes precisos

Congelar um momento? Como e para quê?
Ainda são absurdas as coisas que dizemos. Sem espaço e pouco mesuráveis fisicamente. 
Piadas pobres sobre escombros do silêncio da nossa nudez. Legendas fodidas, carne viva, carne pela carne. Gente "reles", pessoas que derrubas do pedestal; nicotina nas veias dilatadas.
Imperfeições de medula. O bairro, ruas e ruínas em desgraça, crianças com berços de borracha, pneus de camiões TIR. Deixa arder tudo.
Ladrões de auto-rádios:
- "pá, não vi nada. Gamem tudo".
Tarôt, bruxas, maldições, puta que usaste uma beata minha que deixei no teu cinzeiro de carências numa madrugada qualquer pálida.
Confusão de corpos no jardim interior da tua casa de horrores. 25. Bela idade para instalar explosivos nos pilares da vida. Tungsténio com o os porcos, três mil e setecentos graus Celsius - "It's  hell, baby"
Fender Stratocaster afinada em ré, metal pedal, fuzz, estamos juntos na placenta, mãe.
"Wonderboy"? 
- o caralho.
Roleta russa logo pela manhã. Traz as cartas que eu levo o azar.

quarta-feira, 15 de julho de 2015

manhãs submersas

A manhã estanque, apesar do vento, e a melopeia que gasta árvores; o céu, aqui e ali, diáfano, que o eclipse é coisa dentro de ti; pendurado por um fio invisível - fados de merda, digo para mim. Ao longe, um cão uiva a sua dor. Todos a temos. Cada um tem a sua caixa de mazelas sempre à mão; uma colecção bizarra de tudo e de nadas que, de vez em quando, se amotina sem convite - foda-se - só porque sim. Olho para o alcatrão escuro, a estrada sinuosa e sei, claramente, que no fim da mesma está um coitado sem morada. Ao relento o tempo demora-se mais. Conheço-o há anos. E a solidão cravada no rosto dele, sempre que me cruzo com ele, traz-me à memória o suplício das cartas que escrevi e que nunca cheguei a selar, talvez, porque um dia me tivesse dito: se eu soubesse escrever, enviaria cartas de amor a toda a gente que passou pela minha vida. 

Sorri, porque nada lhe tinha para dizer em troca. O silêncio fica quase sempre bem. Por ser, entre muitas coisas, escudo poderoso.

De vez em quando, um gato de rua ronda a minha porta. Vejo-o a purgar-se no canteiro da minha vizinha ali do prédio da frente, a mesma que há-de vir despejar o lixo por volta das onze e qualquer coisa, porque faz o turno da noite no hospital e ainda dorme. Fumo um cigarro, enquanto a manhã continua estanque, e no meio de tudo o que se evapora no ar mas que não se desvanece na cabeça, teimo em obcecar pelas coisas que te escrevo mas que não tenho coragem de enviar - farei delas um enxoval de fracassos. 

Assim, fardo pesado, é o remorso que carrego. Deveria ir à farmácia e aviar aquela receita de Lítio, que guardei na gaveta das contas por pagar. Mas opto por tentar esquecer. Afinal, é tudo a termo perdido e - suspiro - que se foda à aprovação dos outros.

terça-feira, 7 de julho de 2015

fatalidades

Não sei o que te anda a passar por essa cabeça distorcida, sinceramente, não sei. Queres «acabar» comigo e escurecer ainda mais a ideia que tenho dos amores felizes ou «amores infelizes»? Já deverias saber que nessa «questão» não aposto qualquer ficha, aliás, nem sequer me sento na mesa de jogo à espera de ver nas cartas uma possível combinação do caralho. Sim, o amor é um jogo, especialmente para aqueles que não se amam a si próprios e tu sabes – melhor que ninguém - que não tenho uma ideia agradável de mim. O desafio que tenho é voltar a acreditar nas pessoas, sabes, nas pessoas em geral. Reconhecer-lhes os verdadeiros valores humanos e, talvez, dessa maneira, descobri-los também em mim, sabendo que alguns já cá «moram». Mas tu insistes em denegrir isso. Envias-me mensagens com fotografias a preto e branco ou ligeiramente desfocadas – o suficiente para te reconhecer os contornos – despida e com legendas pirosas do género: «vou fazê-lo agora». Noutra ocasião, mandaste-me uma imagem com roupas de homem espalhadas pelo chão do teu quarto, reconheci logo o taco envernizado que está descolado junto à cómoda, devidamente acompanhada com a pérola escrita – o dono desta camisa dá-me tesão. E no outro dia, sexta-feira passada, não foi, minha querida? Às três e tal da manhã – sim, acordaste-me, sabes que tenho o sono leve, é um trunfo teu – um grande plano da tua barriga, a tua mão debaixo das cuecas, aquelas que comprámos em Paris, numa das várias viagens que fizemos para «salvar» a nossa relação. As distracções combinam tanto com as relações já fodidas e doentes. Ainda bem que não nos deu para fazer um filho à espera que ele nos resgatasse dos escombros – coitada dessa alminha que íamos trazer ao mundo. Mas o que me «parte» todo nessa imagem que vejo, ainda estremunhado, é uma tromba desfocada em segundo plano no meio das tuas pernas abertas e arqueadas. Não trazia legenda essa imagem digna de uma menção honrosa da indústria pornográfica. És uma mulher de pormenores, sobretudo na destruição. Virei-me novamente e adormeci. Às vezes, pecas, não pela falta de inteligência nem de criatividade, mas sim pela subtileza. Podias, simplesmente, invadir o restaurante onde costumo jantar às terças-feiras com as minhas amigas «boazonas e burras» e com as quais não acreditas que não haja cama e orgias maradas sob o efeito de MD ou outra merda qualquer tóxica. Isso sim. Era de valor. Fazeres um escândalo, deixares cair a máscara de mulher executiva que envergas durante todo o dia, a mulher poderosa que comanda – quantas pessoas, minha querida - trezentas e tal? –, e mostrar à plateia, a  menina que cresceu em Chelas, porque eu sempre te disse: podes sair de Chelas, mas não podes querer que Chelas saia de ti, mesmo que chegues a CEO (adoro). Não é que a V. me contou que chegaste mesmo? És uma mulher de pormenores, como já disse.
Mas, voltando ao restaurante, seria assim que te admiraria verdadeiramente no teu empreendimento letal. A bela da peixeirada em local público, a ofensa gratuita, tu - o napalm - a debitar insultos, a gritaria, as bolas de Berlim no caralho da praia, tudo ali em pleno repasto. Voariam copos e pratos. Haveria de gostar disso e condiz melhor com a imagem que tenho das histórias de amor com caruncho.
No entanto, continua a enviar-me fotos dos gajos que seduzes (?) no ginásio onde pagas metade do ordenado mínimo para ter um PT a lamber-te os treinos. Talvez um dia, e com a tua devida autorização, minha querida, as publique num livro. Acho que ficariam a matar numa edição da Taschen. Ainda bem que toda a gente pensa que a nossa história é mentira. Porque é verdade – que é mentira.

quarta-feira, 1 de julho de 2015

mortes minhas

Chegas-me durante a madrugada. Não sei se me sinto já. A luz baça dos candeeiros é agora estaca no coração, tormento de fuso, amiga imaginária, doce refugo da vontade que tenho em que fiques. Quanto tempo se passou? O teu cancro. Esse filho de puta que nos te roubou. Pérfido conviva de passo leve e sorrateiro a ceifar-te. Caio no chão e agarrado ao estômago, grito sem esboçar qualquer som. Onde estás? E vejo-me ali atrás do muro a regurgitar a alma toda, coração na boca, pulmão na ponta da língua – meu Deus – creio nos falecimentos oblíquos, jazigos de pedra no tacto ínfimo da memória. Eu ali rasto feito e tu a amparar o meu corpo esquálido de sentimentos. Tu a acenderes um cigarro e a dizeres-me: vai passar. Vai passar – repito, sem sequer imaginar que tinhas razão porque o que tu sabias era na verdade muito daquilo que eu não. Tu a sorrires e a dizeres – tonto. E chegas-me na palidez do que me lembro – a tua voz frágil a roçar o tom senil que a vida canta quando se despede. Tu a dizeres-me: vamos ao “baile das velhas”. Eu a rir. E eu ali à entrada, com o porteiro a falar-me das fintas espectaculares de um boliviano qualquer, e tu a com a cara de gozo sabendo que eu não percebia nada do assunto e nem sequer sabia de quem é que ele estava a falar. E dóis-me nas pontas encharcadas dos lençóis onde vou limpando o rosto à medida que desfilas no sangue escuro das minhas veias. E eu ali, sem saber dar um passo de dança, encostado ao balcão a pedir mais um. Tu divertida. Com a felicidade estampada na cara, a «esvoaçar» de lá para cá e e outra vez para lá – vai passar – parece dizer-me o teu olhar afoito e silencioso –, agora à distância maior de mim. No caminho de volta, cansados que a manhã era coisa de minutos, costumávamos parar ali no café ao pé da tua casa onde me deixavas já exaurido. Tu sorrias e dizias – tonto. E eu, que nem sequer te consegui visitar no IPO, tento adormecer, com o esforço para apagar de mim os momentos em que nos vejo ali aos dois noutro tempo qualquer. Juízo! – dizes-me outra vez. Olho para o despertador – 5:04. A morte quando nos leva os amigos deveria perguntar-nos se podíamos ir também. Mas não é nossa hora, ainda.

Em memória da Lina.
Julho, 2011