quarta-feira, 2 de dezembro de 2015

domingo, 4 de outubro de 2015

do cume da desolação

Deste 10º andar, toda a vida me parece distante. Deste 10º andar, o mundo como o conheço deixou de existir. Não está em ti, esse defeito pernicioso – está apenas em mim. Por isso te ilibo adorável, apática e frígida criatura da Natureza. Estiveste sempre por mim aqui.
Deste 10º andar, todos os sofrimentos e dores passam ao lado, ou melhor, passam-me por baixo. Lá em baixo – tão longe. A vida de bairro pobre. A vida de bairro de antro, tascos, branca e castanha.
Como a vida me parece agora uma pequena miniatura esculpida sob arte humana, desfigurada, no entanto. Nos hiatos dos fumos discretos, penso que vivo mais aconchegado aqui, acho que sim, que estou bem aqui. Na distância das distâncias. Longe de tudo. Longe desse mundo que outrora conheci e parte dele que não conhecia, mas que com uma ansiedade estóica e desmedida queria conhecer. Deste 10º andar, recordo-me dos tempos de liberdade. As tardes de ócio a proclamar letras. Os cafés partilhados com os desconhecidos que, para que se saiba, me eram sempre rostos familiares e, de alguma forma, próximos. Escrevíamos, por vezes, a quatro mãos. Escolhi este 10º andar, porque esperava que a dor que não conseguia ver daqui – a dos outros – me ocultasse a minha. Um dia saltei. De elevador.

Por mais que me afastasse do centro do mundo, mais me aproximava do meu, e sem mais demoras e atalhos, apercebi-me que essa distância era ilusória. Morria também, sempre que alguém era alvejado à nossa porta. Era mentira afinal; quanto mais no alto e distante, mais próximo estava. Quanto tempo se passou para eu perceber isto? Quanto tempo se passou para eu perceber que me dava mais prazer, estar sentado na varanda a fumar cigarros, enquanto os ciganos se pegavam com outros traficantes dos bairros vizinhos, em vez de ir para a cama e te acordar para te perguntar: 
- é hoje que fodemos? - Há três meses que não o fazemos.

segunda-feira, 14 de setembro de 2015

não tão forte

Era outubro de um destes últimos anos perdidos a toque de caixa bolorenta de memórias. Carreguei o carro, sabendo que era a última vez que o fazia. De alguma forma, a solidão que me envolvia os esqueleto era quase como um manto que me protegia de ti. Protegia-me do teu toque, que já nada queria saber ou perceber de abraços. Um abraço é incompreensível. E, uma vez mais, a vida de cigano, mala às costas ali - que podia eu ter feito para alterar o que fosse? Optei pela guitarra às costas, o livro de poemas no bolso, o tabaco de enrolar na caixa, a garrafa no porta bagagens. Passei pelo tasco do costume, despedi-me do Toni, do carteiro, da Lúcia, e nem me esqueci da empregada, a Ernesta. 
Chovia torrencialmente. Decidi meter-me à auto-estrada, conduzia a 60. Fazia filas, apitavam-me os apressados restantes condutores que nada sabiam do que eu tinha acabado de deitar fora. A vida é fértil em desperdícios. Às vezes, o ouro não inflama e muito menos seduz. Parei numa estação de serviço para abastecer e jantar já tardiamente. Na hora de pagar a gasosa e a comida, ofereci ao gajo da caixa o TAG HEUER com que me tinhas, contra minha vontade, presenteado no meu trigésimo sexto aniversário. Eu nunca gostei de andar com relógios no pulso. Inicialmente, o tipo pensou que era brincadeira, depois uma imitação qualquer bem conseguida, depois viu-lhe a veracidade e meteu-o ao bolso como se lhe tivesse passado umas gramas de uma merda ilegal qualquer. Recebi o talão. Ele atendeu o cliente seguinte. 
Arranquei para a estrada, três e tal da manhã, e agora sim, essa serpente mergulhada no escuro carente de almas vivas. Comigo só vinham os mortos, onde eu me incluía. Ouvi esta música repetidamente até estacionar o carro à frente de casa. Naquele dia, prometi a mim mesmo duas coisas: uma, que jamais correria cegamente atrás de troféus. A outra, de que pararia de tentar provar a mim próprio o que quer que fosse. Na primeira falhei, não se tratasse de uma promessa, a outra vou adiando como posso. Com o coração ou com a víscera, não importa. Mas sim, é uma promessa também. E que, para mais uma maleita minha, quebrarei. 
«Não tão forte quanto julgava ser».

quarta-feira, 9 de setembro de 2015

ninfomaníaca #2


Por Fernando K. Montenegro

»Meu querido, deixa-me dizer-te: és tão patético na cama. Fazes-te de macho cobridor, arrepias diálogos e preliminares com um simples «vou comer-te toda», mas no minuto a seguir, esparramas as tuas banhas na cama à espera que te faça o tão desejado broche.
És patético - repito - e agora compreendo o fardo que és para a tua mulher. É bom que nem saibas o prazer que ambas temos quando estamos juntas. É bom que nem imagines os espasmos que tenho quando ela me faz aqueles minetes em que, depois de me vir, encharco a cama toda. No outro dia - juro, seu estafermo - que me mijei toda. Por outro lado, é triste que não faças a menor ideia que ela seja uma amante melhor que tu, e que no fim das contas sejas tu o irremediável corno.
Mas que interessa tudo isso? De braços atrás da cabeça, refastelado como um porco na minha cama, postura de fodilhão das mulheres supostamente desesperadas, pareces um caralho de um novilho no expositor do talho.
Faço-te o «broche da tua vida», meto-te o dedo no cu como tanto gostas mas - ai meu deus - nem sequer se ousar falar disso. Ninguém pode saber, nem mesmo eu? Vens-te um minuto depois e, mais uma vez, fico-me pelas tuas promessas «vou comer-te toda». Deixas-te cair na queda onde já estavas e exclamas: foi o broche da minha vida! (és tão previsível, meu javali domesticado).
O que me salva o dia, é a ideia de saber que a tua mulher vem cá amanhã, porque, ela sim, sabe fazer do meu corpo um diapasão. Aquilo que tu prometes, meu labrego, ela faz - come-me toda, por inteiro. Mas, meu querido estafermo, eu até te compreendo, promessas não passam disso mesmo, não é?
- vou buscar papel para te limpares, querido.

long way home

Pagas. E sais a cambalear. Espera-te uma caminhada solitária pela estrada deserta. A noite, quente e clara, proclama alguns quilómetros sombrios, dentro de ti. Que contradição é esta? Altura é tramada em distância. De vez em quando, um carro abranda. Moonshiners.
»onde é que esta alminha vai?«
Acaba por acelerar logo a seguir e destino com ele. Passo por um tasco, discussão a sério cá fora, porrada iminente, cheira-me; fodeste a minha mulher e agora o quê, foi bom? - diz um - enquanto empurra outro ligeiramente mais baixo. «Não foi como pensas». 
Nunca é, fica-se sempre pela imaginação. Ela de cremalheira escancarada a foder o amigo do marido, e este que só pode imaginar-lhe o corpo rendido ao prazer alheio, a curiosidade mórbida que agora lhe alimenta a grande questão: foi «melhor» do que com ele, e teme que a resposta venha da parte dela: é mais homem que tu. 
Um grupo à volta tenta cercar os barris de pólvora. Olhos na rotunda longínqua. Sigo caminho, que esta peça de teatro não é para mim, não hoje, pelo menos. Depois, de repente, com aquilo tudo, incluindo o pó no ar e que me vai preenchendo pulmões e tecidos, vem-me à cabeça a confusão toda que o Milton debita quando os anjos são expulsos do cerco das harpas. Lúcifer do seu «Pandemonium» compra a aprovação dos outros traidores que, confundidos, nem sabem muito bem que a mão árida e pesada de Deus, os remeteu para o concílio da vingança e reconquista do reino celeste. Mas depois à laia do «dormi com a tua mulher, amigo» — «Melhor reinar no Inferno do que obedecer no Céu.» - diz ele, ele que supostamente tinha a beleza da estrela da manhã, e que fora muito amado pelo seu Amo.
O poder é fodido. E os ídolos, também. E como a mulher é o centro de tudo, e tudo começou como ela, é natural que, um dia destes, a ruína também chegue sobre a sua haste. «Foi inevitável» dirá a criatura, na tela que pinto; palavras essas que o corno há-de apagar com poções mágicas de rum, destilaria, ou outra merda qualquer. Dêem-lhes droga, dinheiro e sexo, que eles - humanos - fazem o resto; não será preciso puxar muito pelas cordas dessas patéticas marionetas - diz a estrela da manhã - eles fazem o seu próprio altar de degredos. Lúcifer no meio desta interminável recta. 
Já nem me lembro muito bem como chegar a casa. O Algarve é vazio. E eu também, gasto. Uma Lilith e um Robert Johnson no cruzamento mais à frente.
»a crossroad ia a perfect place to establish a pact with the devil«
«With a ten dollar guitar» - os blues dos amores funerários, quem beijou de morte quem?
E continuo no caminho de asfalto esburacado fora, agora com a tua cama no peito, locomotiva descontrolada a pisar-me desenfreadamente, sangue que me escorre por dentro e por fora, sangra este Carneiro de facada.
E ali ao fundo, encadeado por faróis de carros astrais, o teu corpo fino e frágil, desfolhado na madrugada, coração tatuado, amor nos lençóis com odor a velas de cemitério que ardem infinitamente sobre flores e coroas murchas. Quem vai destruir quem? 
De longe ainda ouço um ganido: «achas que eu merecia seu grande filho da puta?» Não, ninguém merece, mas trabalha para isso desde do dia zero, acredita.
Caminhar, caminhar, quase duas e meia da matina, que o corrector quer marina - dêem-lhes a tecnologia - diz a estrela da manhã. «Slide». Marla Singer de bafo gelado e um Pinguim que desliza. «You're a faker Marla»
Entro nos portões da Vila, urbanizações de famílias que amanhã empurram carrinhos de bebê para a areia da praia em silêncio, porque o doce há muito que não é amargo, mas sim ácido.
As ruas desertas, os bares e café fechados, Setembro como fim de romaria de desperdícios. Setembro como mês de tudo ou nada. Pelo corta-mato que faço, já sei onde estou, dois putos a comerem-se num pano de fundo de canaviais. »aproveitem enquanto essa merda dura« 
O corpo adormecerá com a alma e com o coração apedrejado, a bagagem fodida, carregada por ombros cansados, olhos desnutridos, a vida quase toda num instante de crenças abolidas.
Noite, quente e clara, toda ela nestes bafos que dou no último cigarro da noite. Azazel, dá-me tu uma cama, de exausto que estou, para que não sinta as costas em flagelo.
Dois minutos depois, a esperança neste gesto: o de rodar a chave na porta de uma casa alugada. Talvez, os pensamentos façam parte da renda. E fiquem cá, quando a bússola me orientar novamente para cima, para Oeste do meu Norte. O Algarve é vazio. 
«fodeste a minha mulher e agora o quê, foi bom?»
Agora, aguenta-te, eu sei que consegues.

quinta-feira, 3 de setembro de 2015

lamento

os
Morcegos que cantam
Na noite obscura, 
Ébria de dor
Órfã
Na nulidade dos teus olhos 
Vazios de sentimentos,
Vazados de esperança
Gritos desesperados 
Na linguagem subtil do teu corpo
Morno
Quase quente
Na ponta da língua escorre saliva 
Sobre os teus seios
Onde, de cabeça morta e de que me faço, choro mais uma vez.

segunda-feira, 31 de agosto de 2015

ninfomaníaca

por Fernando K. Montenegro

A mulher suave tem a volúpia a correr-lhe no corpo.
Foi o que ele pressentiu.
Desejo de beber, devorar e abocanhar. Não pensou muito nisto.
Mas as sombras iludem. 1000 Newtons de pressão mandibular.
Quando ela comprimiu com as pernas o corpo dele contra o seu não lhe admitindo uma eventual fuga – ele – totalmente acabado.
Exigiu que lho metesse – mete-mo todo, seu garanhão cabrão.
Primeiro suspira, depois geme, depois implora e a seguir – com o olhar de extermínio ordena: fode-me o corpo, a alma, o juízo, a sanidade e o que vier por acréscimo.
»A sanidade?«
Quero-a fodida à canzana. Aperta-me – sussurra-lhe – aperta-me as mamas, esquarteja-me os mamilos e rasga-me a cona toda.
Ele mete-lhe o caralho sem demoras e com uma das mãos torce-lhe uma das tetas gigantes.
Ela trinca o lábio inferior e um risco de sangue assome-se-lhe na boca borrada do batom rosa.
Depois tira-lho de dentro. Ela grita – NINFOMANÍACA!
Ele mergulha-lhe a língua na cona piscina e catarata. E depois o abecedário na ponta da língua colada ao clítoris, enquanto dois dedos lhe tacteiam a parede anterior.
Ela grita – DÁ-ME MAIS!
E ele, de língua no clítoris, dedos no ventre interno, estimula-lhe o ânus com o anelar. E pressiona-o um pouco.
Depois, desce e lambe-lhe o cu, a ponta da língua afiada no rego, nas nádegas onde a luz nunca chega.
E ela grita – FODE-ME TODA GRANDE CABRÃO!
E a boca dele alterna entre o frenético desesperado que luta pela vida e na câmara lenta de quem já tem a boca adormecida.
E ela grita – LAMBE-ME AS TROMPAS!
Enfia-lhe os dedos na boca – cala-te, minha puta – e enfia-lhe o caralho na cona, depois, tira-o e mete-lho no cu, e volta a meter-lho na cona. O caralho como broca ou pedaço de cetim. As mamas balão comprimidas por oitenta quilos. Ela morde-lhe os dedos e ele tira a mão e esfrega-lha com força na cara.
Ela grita – NINFOMANíACA!
Ele diz – vou-me vir.
Ela grita – JÁ!? - METE-ME TUDO À GARGANTA!
»o nome de deus invocado em vão num uníssono estúpido e artificial«
»gritos«
Ela engole e grita – NINFOMANÍACA!
Ele desmaia-lhe no pescoço. Ela afaga-lhe os cabelos – estás longe de me foder a sanidade, querido.
Da boca dele um – não gosto de foder à canzana – entrecortado no catarro de cachimbo.
- É que só essa imagem faz-me vir em dez segundos.


Ela grita – NINFOMANÍACA, DÁ-ME MAIS!

sexta-feira, 21 de agosto de 2015

benfica

Fui almoçar a casa da minha mana. Biológica, que a de coração e osso, também, está em Paredes de Coura a divertir-se à grande. A TV estava no noticiário. Morte de uma mulher em Benfica. Parei logo de comer. Uma parte de mim é de Benfica; vivi lá um ano, apenas, mas foi intenso, destruidor e portanto, enriquecedor. A vítima trabalhava, segundo percebi, numa «casa de meninas» nuns prédios atrás de onde estava a ser o directo. O termo foi aplicado pela repórter. Reconheci a zona. Lembrei-me da «casa de meninas» cujo-nome-não-deve-ser-pronunciado-mais-que-não-seja-por-respeito-à-falecida e que ficava num canto refundido de umas arcadas. Fui lá duas ou três vezes em noites de lua e tormento de espiral. Recordei-me da Tatiana, uma romena de 35 anos. Boa. Tesuda. Ainda que envolta de escuridão propositada do ambiente daquele estabelecimento. A primeira vez, disse-lhe que era médico e que a minha mulher era frígida. Que dormia em casa, com os anti-depressivos e psicóticos a percorrer-lhe o organismo. Que a tinha traído com a mãe dela. A Tatiana interessou-se muito pela história, e pela minha suposta carteira de médico - desconfiei. Disse-lhe que estava a aborratar de dívidas, contraídas em nome de uma moradia com piscina, solário e  sauna. Não me senti mal por mentir e ir para o inferno, há muito que tenho o meu lugar cativo nesse palco de fogo. Ela interrompeu-me e perguntou: quanto pagas para ir comigo ali para o privado? Sorri, dei um gole no Bushmills, amigo e companheiro de desgraça diurna e nocturna, e respondi – a questão aqui é ao contrário: quanto pagas tu a mim? Por que motivo haveria eu pagar para estar contigo, sendo este o meu trabalho – o de cobrar? Tatiana, minha querida, olha à tua volta, vês aqui algum homem abaixo dos sessentas sem barriga e ar de porco, sem ser eu? Tu tens um ego e uma lata do caraças. Não – respondi – tenho é dívidas para pagar. A Tatiana levantou-se e disse que eu era louco. Bebi o resto. Saí. A caminho de casa, passei pela zona onde assassinaram, actualmente, a companheira da Tatiana. No tasco da frente, o grupo de noctívagos do costume e que ficava depois daquilo fechar, já tinha dado andamento para outras bandas. Pena – pensei. Ainda ia outro malte. Fechei a porta bruscamente. Adormeci vestido. 
Voltei lá umas semanas depois. A miúda estava ao colo de um velho rebarbado qualquer. E eu, não menos que o cota, pensei: este sítio cheira a morte. Nunca mais lá voltei. Hoje, quatro anos depois, a compaixão que ainda julgo possuir, vai para essa mulher que perdeu a vida, triste ou feliz. Tenho a certeza de que não estou só no lamento dessa perda. RIP – Dominique.

velhice

Ontem, na praia, fui fazer uma corrida. Devo ter corrido uns três quilómetros - quando parei. O coração emergiu da sua caixa e foi-se estatelar ao comprido na minha boca, e também o iPod decidiu desbaterizar-se e dar por terminada a contribuição para o galopar do esforço na areia. Dei comigo na praia ao lado, numa de nudistas. Selvagem e semi-deserta. Homens e mulheres bronzeados sem qualquer marca de branco lixívia, a perpetuar uma peça de roupa de pele inexistente. Continuei a caminhar, e distraí o curioso, vulgo mirone, em mim com a vista do mar. Mais uns metros caminhei para Norte, contra o vento, quando decidi voltar. Nesse regresso, um senhor com idade, calculei, para ser meu avô, cruzou-se comigo como veio ao mundo. Inevitavelmente, olhei para todo ele como matéria viva. E por meros instantes, tive um vislumbre do meu futuro. Flácido, encarquilhado, engelhado, tormento, horror e desgraça, o que me espera - o futuro - ó mentes perversas. Se lá chegar, é claro.
Mais tarde, na esplanada, em conversa com uma amiga, falámos casualmente de como o tempo passa rápido e que daqui a dez anos, teremos 50 anos - meio século. Assustou-me, pontualmente, porque me revi na velocidade supersónica dos mesmos últimos que passaram e nos quais pouco ou nada fiz digno de ser registado. Parei a mente por breves segundos, fechei os olhos, senti o sol nas pernas, respirei profundamente, voltei a abrir os olhos e olhei para o horizonte. Uma gaivota rasgou o céu em voo picado. Um odor a protector solar atravessou clandestinamente a atmosfera. Uma empregada piscou-me o olho quando lhe pedi um cinzeiro. Na mesa ao lado, uma velhota com um chapéu lindíssimo de palha deu uma gargalhada sonora. E a bandeira estava amarela. Pensei: o tempo é aquilo que faço dele. Como uma espécie de moldar plasticina colorida. E estar em cada sessenta segundos de peito aberto, absorver cada preciso e precioso instante, o aqui e o agora, também será uma parte do muito proclamado «saber envelhecer bem». Quando olhar para mim, se lá chegar - repito-me -, aos oitenta ou ligeiramente menos, quero ver a minha história de vida na pele quebrada e rugosa do corpo vergado pela fúria amante da vida. E quero muito rir de mim próprio, todo nu num areal qualquer.

quarta-feira, 19 de agosto de 2015

razão

Em 1999 fui acampar com três amigos para Porto Covo. Eu tinha levado com os pés de uma namorada com quem estava junto há cinco anos. Ir dez dias para uma tenda beber copos para uma praia que, naquela altura, desconhecia, pareceu-me uma excelente ideia para asfixiar a imagem dela que, escusado será dizer, acordava e adormecia comigo. Gostava dela. Era aspirante a bailarina, andava no conservatório em Lisboa. Teria dado uma excelente companheira para a vida. Hoje está casada e tem filhos, portanto eu até tinha olho para a coisa. A questão é que se tivéssemos continuado, eu e ela, não teríamos aquilo que ela agora tem – uma família e estofos de carros vomitados (inveja). Adiante. Estava a fazer o meu jantar e liguei o rádio numa estação qualquer e ecoava na cozinha temperada, o Veloso justamente no verso «não se ama alguém que não ouve a mesma canção». Reportei-me logo para um bar desse tempo, 1999, onde um amigo meu refutava esta ideia, e eu, teimoso como o raio, com o peito inflamado dos 23, defendia aquela afirmação a pés juntos, escudos e sabres empunhados. Eu e ele tínhamos gostos musicais bastantes diferentes. Infantilmente, chateámo-nos nessa noite. Do Veloso para a música, para as gajas, para os amigos, para a família, para o futebol que eu detestava, para a música, para o sexo, para ofensas e ataques pessoais, para as cobranças e o caralho mais velho – pronto, foi Pearl Harbor a uma escala ´muito mais reduzida – é certo – mas com o instinto kamikaze todo lá. Deixei de o amar como verdadeiro amigo daqueles de verdade nessa noite, e zarpei de Porto Covo na manhã seguinte ainda irritado. Que puto estúpido, eu. Mais tarde, quando nos cruzávamos, acenava-lhe e perguntava-lhe o clássico: tudo bem? Continuava o caminho em passo acelerado, cagando-me para a resposta, como acontece sempre, aliás, quando se faz essa pergunta a alguém na rua. Nunca nos reaproximámos. Vi-o esta tarde. Levava uma t-shirt dos Linkin' Park. Disse para comigo: Kai, há 16 anos, no meio da infantilidade e estupidez, tinhas razão. Hoje estaria a lixar-me para ela – para a razão. As minhas crenças dispensam seguidores.

quinta-feira, 13 de agosto de 2015

Hoje

Às vezes, o meu deus na forma em que o entendo e concebo, surge diante de mim prostrado; os joelhos esfolados, cortado, mutilado, e todo ele a esvair-se em sangue. De rastos, encolhido como um rato assustado, implora-me perdão.
««Pelas vezes em que te abandonei»»
Estendo-lhe a minha graça e «digo-lhe» sem emitir qualquer som: foram essas ausências que me fizeram acreditar cegamente em ti. 
Ele sorri brevemente hemoglobina e dentes. Entalha as palavras mudas e some-se. Nunca se despede. 
Raspo as postas de sangue coagulado do chão, enquanto rezo por ele a oração à minha lei de capela.
Imagino que querer deixar de ser deus de algo, deva ser apetecível e que a impotência perante a irreversibilidade dessa condição, seja dura de suportar. Talvez não possas tudo.

terça-feira, 11 de agosto de 2015

adamastor

Fuzila-me já. Estou de mãos e pés atados, que se foda a vida. Poupa-me o caralho da venda, quero olhar-te na tua cara cerzida.
Imagino que seria suposto lamentar os teus lençóis molhados, as dores da incauta que és, e as tantas vezes nas quais te avisei que seria a tua desgraça e queda. 
Imagino que sim, que devo agradecer as vezes em que me limpaste o vómito do chão, e, também, agradecer as tuas massagens nas minhas pernas quando as mesmas pareciam amputadas pelas substâncias tóxicas que corriam no meu sistema linfático, alterando cornos e ossos; imagino ter que agradecer as inúmeras vezes em que me levaste comida a casa, e onde eu morria na minha cama adornada por flores fúnebres e murchas, e quando do fundo desse túmulo apenas te rosnava: foge de mim.
E de salvadora, passaste num ápice para uma espécie de Madame Potifar, cuja vontade orgásmica era ver-me acorrentado sem ver a luz do dia. Que era, naturalmente, onde eu já me encontrava. Para quê o teu esforço? Quereres chacina, sangue, merda e ejaculações que ardem por causa das infecções urinárias que fui apanhando à laia de uma lei de malte absorvido em exagero, não me parece que vá fazer diferença. 
Não me assustam os teus bruxedos de barraca pobre e decadente no meio da mata, potes de mijo, beatas conspurcadas, pés de cabra, e outras maleitas cuidadosamente coleccionadas. É suposto que seja assim, cultivar o ódio para que possas perceber que, ao fazê-lo, estarás a beber o veneno à espera que eu morra. É sempre assim, querida. Ainda que conjurados, que se lixem os quebrantos. Há um estranho sol em mim. E um cabrão será sempre um cabrão. Não se desvia das balas, entalha-as para si, e alimenta-se da pólvora.
Se te serve de consolo, pensei exactamente dois minutos e trinta e oito segundos em ti e nos teus dilemas. Depois, cansei-me. 
Hás-de ter o teu tempo para perceber que o muro onde me queres encostar e estilhaçar o meu pequeno e limitado cérebro, será aquele onde te poderás encostar comigo e falar-me dos teus projectos. Mas salva-me daquela horrível criancinha que vive em ti e que esperneia a debitar constantemente «foda-se isto e foda-se aquilo». Quando chegar esse dia, deixarei de pensar em ti como um mero vulto que enverga um manto invisível qualquer, porque um cabrão é muito maior que a tua estima pela sua desgraça. E, no fundo, depois do lodo e da tragédia, depois da visão perfeita do lugar de onde veio e que ocupou, também é agraciado – contra a sua vontade, é óbvio – com a bondade e o perdão.

Julho 2014

sexta-feira, 31 de julho de 2015

libertad

Cultiva em ti a paixão pelas coisas não nascidas, o absurdo de pintares a face com as cores das tribos índias, o verão índio e selvagem interminável dentro de ti, cultiva a partilha sem esperança ou expectativa de qualquer retorno, nem uma molécula de atenção ambiciones, dorme profundamente seis horas por dia para que de manhã as olheiras não te sejam peso e espelho da noite de fuso, apanha sol muito sol, vive as coisas simples de forma simples, diz para ti as vezes que forem precisas: «KISS» – keep it simple stupid, cultiva os pensamentos o suficiente para estares ciente e consciente das tuas escolhas, mas pára quando os mesmos te forem espiral tortuosa para que não te sintas cansado e obcecado, lava a louça e a roupa com um sorriso porque dos pratos te alimentas, e as roupas cobrem o que é sagrado e ficam sempre bem espalhadas à toa no chão do quarto com quem as tiras, escreve cartas, compra envelopes, selos e escreve no destinatário o nome de um amigo com o qual há muito não falas, envia-a sem hesitares, sorri muito, dança nem que seja sozinho em casa, vê o mar adormecido na profundidade da madrugada, mergulha nu nas ondas, deita-te na praia ainda que chova, sente o vento na cara e diz agradecido – que bom estar vivo mesmo que te sintas a maior merda à face deste planeta maravilhoso -, bebe muita água, adopta um animal, um companheiro que te ensine a cuidar de alguém e que te seja fiel, planta não uma árvore mas muitas e abraça cada uma delas, areja o quarto mas nunca faças a cama ainda morna dos corpos dormidos, vê filmes estúpidos que te façam rir, vê filmes pornográficos e faz sexo, paixão, amor, desgraça íntima ao ar livre, lê banda desenhada, calça uns ténis rotos e vai a uma festa qualquer onde possas cagar na puta do «dress code», não laves os dentes mais do que dois minutos seguidos, fala menos e ouve mais talvez por isso tenhamos dois ouvidos e só uma boca, beija muito para que não deixes que os teus lábios sequem, confia na vida, no teu deus na forma como o vês, no universo, na bruxa, no padre, amuleto ou caracol, mas confia de coração, sê prudente e preservante, mas não te esqueças de partir um vidro à pedrada pelo menos uma vez na vida, bem como andar à porrada por uma estupidez qualquer para que percebas que a violência não singrará em nada e que o teu corpo não te agradece as feridas, escolhe os teus amigos não por serem bom conselheiros, mas porque te abraçam quando precisas, e te dão nos cornos na mesma medida quando deves levar, viaja com eles o suficiente para quererem voltar contigo novamente para casa, cozinha bastante, não há maior prova de amor que presentear alguém que estimas com um prato elaborado com dedicação, ri-te se no fim estiver insosso ou salgado, não leves as coisas demasiado a sério deixa isso para quando te chegar a morte, quando te derem algo nem que «só» sejam palavras diz agradecido em vez de obrigado, não o és a nada e muito menos te sintas na obrigação  de dar o que quer que seja em jeito de pagamento, e, por último, 

esquece toda a merda que leste, e faz as coisas como te sentes melhor e à tua maneira.

quarta-feira, 29 de julho de 2015

estrela

Chegas-me quatro anos depois daquele dia em que te conheci. Entras como se conhecesses os cantos da minha casa. Olhos vendados e ainda assim o teu tacto encontra-me sem demoras, apelo e agravo. Trazes contigo o calor morfina, o mesmo com o qual não me urdiste no tal dia que vive agora em mim e no qual nos cruzámos. E vêm os fragmentos.

Um final de tarde de sábado, ali na pastelaria João XXI na esquina com a Augusto Gil. A L., esquizofrénica do bairro, está sentada na minha mesa. Diz-me, pela centésima vez, que não aguenta mais que o pai e o irmão a controlem; que contem o dinheiro até às moedas «pretas» para que não possa beber, e, mais tarde, aparecer com homens em casa. Coisa que ela – diz – fazer muitas vezes quando eles não estão. Diz-me que a Olanzapina que toma lhe dá uma ternura de abraçar céus e que se sente um animal domesticado, mas que, de manhã, lhe apetece beber um copo de vinho «Flor das Tecedeiras» porque a recorda os bancos de jardim junto aos ciprestes do Júlio de Matos. Tentar respirar – digo – enquanto vou bebericando do meu Bushmills. Ela responde: dá-me um gole, ao que digo que não vou ser cúmplice da manipulação dos químicos que lhe estraçalham as veias. Está bem – suspira – gosto de ti porque falas comigo. 

O meu telefone toca. É a C. Pergunta-me se quero ir jantar com um grupo de amigos que se reúnem frequentemente ali para os lados da Guerra Junqueiro. Mas hoje é em Santos, e a seguir ir «dançar a qualquer lado». Hora marcada. Banho tomado à pressa porque a L. me demorou com a versão estendida sobre o processo de fabrico do azeite, cigarros no bolso, mais um escocês que aterra no estômago e apanho o metro.

Estão todos. Mas no meio – estás tu e um rapaz que não conheço. E tu olhas para mim de fugida, sorris, e voltas à conversa do outro. A C. arrasta-me para junto de vocês e diz – este é o Fernando. Tu olhas, beijas-me e dizes – Sou a N. e este é o D. Junto-me à conversa que a C., sempre diplomática, já está a gesticular e organizar os restantes. Vocês falam de trabalhos gráficos, agências de publicidade, fadas, fotografia a preto e branco de corpos nus, instalações artísticas debaixo da ponte 25 de abril, e o caralho mais velho, quando, de súbito, me perguntas – que pensas tu acerca desejo? e sai-me qualquer disparate como: todos os corpos com as devidas condições de exposição e entrecortados pelas trevas, podem despertar o desejo, nem que seja um corpo de 120 kg. Eu, no meu podre maior. O D. diz que tenho tiques femininos e pergunta-me se sou gay. Digo que se o sou que ainda não o descobri. Tu olhas-me e sorris. Voltas aos seres especiais que voam e aos cavalos selvagens que dizes respirarem-te no peito.
Entretanto, a C. traz um charro que circula entre nós no sentido anti-horário. Deveria ser um sinal - penso, e quando chegam as seis da tarde, a minha vez portanto, dois bafos profundos e, sentado na minha planície de enganos, estendo a mão para o J. que diz: mato. Tu ofereces-me uma cerveja e eu recuso porque sou cagão – digo - Corona ou Desperados. De qualquer maneira hoje a minha rota contempla a espiritualidade escocesa. 

Jantamos. Depois, alguém grita: Miradouro de São Pedro de Alcântara. Outro grita Lux - mas é cedo – replica um terceiro. E não sei bem vinda de onde, do Vietnam se calhar, chega a S. que eu conheço de outras guerras de lençóis, aos quais fugi assim que pude, porque fui cabrão e a usei e ela diz: N. – tu conheces este traste? Conheci-o agora. Afasta-te que este não te traz notícias que queiras ler. Leva-te para um canto, e vejo-a esbracejar muito e virar-te por duas vezes as costas, mas a voltar-se para ti e a agarrar-te pelos braços como se te quisesse contagiar com uma doença qualquer. Voltam as duas. E eu digo – Lux, não obrigado. Convido-te para vires ver a vista da varanda do meu quarto. Tu não me conheces – dizes – queres foder-me, não é? Dizes que não e nisto o J. chama-te para irem mandar um último risco supersónico dentro. Tu vais, rematando: querias fazer o mesmo que fizeste à S., mas eu prefiro o azul do que o cinza e amanhã viajo para o Perú.
Fico especado a olhar para o teu corpo esquálido, tortuosamente apetecível, que desaparece por entre a multidão, tortuosamente indesejável, enquanto digo para mim próprio: fodas-se, não percebo muito bem estas mulheres estranhas.
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A branca é uma merda.

Acendo um cigarro, bebo um copo de rajada, e depois outro, e ainda um último que será o primeiro? Despeço-me da C. e do D. que ainda me pergunta se não quero ir «dar uma volta» com ele. Sorrio. Outro dia quem sabe. Chamo um táxi e o tipo pergunta-me – para onde? Passerelle na Óscar Monteiro Torres, por favor. Acabo a noite a ver mamas e conas coladas no varão. Corpos suados das eternas contorcionistas da indústria dos alumínios, coleccionadoras dos cromos do champanhe. Tiro umas fotos que não devo e sou convidado a sair. Despeço-me da Romena das tranças. Caminho para casa, uns duzentos metros à frente, talvez. A L. já tem a luz apagada. A Ketamina já lhe deu asas no sono, penso. Subo as escadas, o cabrão do senhorio que não manda arranjar o elevador. Atiro-me vestido para a cama de cacos e de espinhos fodidos, contos de horrores na penúrias da pobreza de espírito e recordo-me das tuas palavras: queres foder-me, não é?

Quatros anos depois, vidas ao ar, mundos percorridos, países viajados, outros odores, outras trocas, voltas e espirais celestes, mancebos, corruptos, chulos nos antros, as empregadas da limpeza, as subidas solitárias do alto da Algés, porque o Sr. Juan era um excelente psicólogo de balcão, Sintra, as bolas de Berlim na praia verde, o manta beach, as bifanas de Benfica, o Batucada, os encontros literários, as peças do Turim, actrizes em festas, casas transformadas em circos, autênticos arraiais populares na vertigem de ir ao fundo fé promiscua e decadente, piscinas onde nadámos nus debaixo das noites concupiscentes, toda a parafernália de auto-estradas percorridas de madrugada, o desmaio junto aos bombeiros, depois disso tudo, entras sem eu dar por ela, e visito-te sem saberes, também, e fico a saber que é uma fotografia na qual tropeçaras, que te traz à cabeça que afinal não fui tão parvo e indiferente, depois disse tudo e de horas inteiras a encaixar as peças, chegarmos à conclusão que 1+1 são sempre 3.

Hoje, no meio de um verão sem início e sem fim, dizes-me: vem ter comigo e em vez de me foderes, fodemos por amor os dois, lentamente, pode ser?