Ontem, ao fim do dia, fui fazer uma corridinha. Ao percorrer um trilho por uma urbanização deserta, vi dois carros estacionados. Num deles, dos dois lados, pendiam braços dos vidros abertos, com cigarros acessos nas mãos. Pensei que fosse o cigarro clássico depois de uma foda bem mandada. Não fosse a mente deturpada que tenho, e imaginei que era tudo puro. Um encontro entre apaixonados, e não amantes perdidos num romantismo qualquer de encornanços com vista para os arbustos e para as caixas de electricidade com as tampas abertas porque o cobre dá bom guito. Não fosse a minha mente deturpada, e imaginei, também, que não havia em casa de cada um deles alguém à espera de ninguém, com o jantar a arrefecer num prato, um miúdo a berrar no banho, uma mãe preocupada com os afazeres domésticos, um marido a trabalhar até tarde no escritório, nada, tudo puro, só mais um final de tarde agradável passado nas ruas desertas por quem não lhe apetece ainda ir já para casa. Continuei a corrida, e não fosse a minha mente deturpada e acreditaria nos amores puros, mesmo em terrenos remotos e estradas desoladas.
«Bebo ao lar em pedaços, À minha vida feroz, À solidão dos abraços E a ti, num brinde, ergo a voz… Ao lábio que me traiu, Aos mortos que nada vêem, Ao mundo, estúpido e vil, A Deus, por não salvar ninguém.» Anna Akhmatova
terça-feira, 17 de junho de 2014
sexta-feira, 13 de junho de 2014
a nossa pele
Uma amiga minha liga-me a contar que
um ex-namorado (detesto o termo «ex»), agora casado há uma cabazada de anos,
pai de dois miúdos, lhe anda a ligar continuamente para ir ao tal café
«clássico», com uma vontade enorme de a ver e ela já não sabe muito bem como
lidar com a situação, uma ex-namorada minha (já disse que detesto o termo
«ex»?) liga-me a contar que a noite dos santos foi hardcore, que abusou do
vinho e das jolas, e que, na euforia com um grupo de amigos, partiu uma montra,
passando a noite a ressacar na esquadra, o álcool não é para qualquer um, digo,
e agora não sabe muito bem o que lhe vai acontecer, pagar a montra no mínimo,
digo, depois, um amigo meu de infância, casado também, que encontrei ali à
porta de um café onde fui desafiar a minha sorte no Euro-Fuckin'-Millions (para
quando a puta da viagem à volta do globo terrestre?) conta-me que no trabalho
anda a ser assediado à bruta por uma loura com tamanho de sutiã (fui ao
Priberam para confirmar como se escrevia em português) 40 copa B, e também já
não sabe gerir, como ele diz - a pressão, que um dia talvez ceda, mas que não
quer magoar ninguém, e eu respondo, tenta uma cena a 3 com a tua mulher, também
não percebo um corno de relações, enfim, já se sabe que estar na nossa pele é
fodido, e que nunca estamos bem com o que temos, mas acredito que a paz há-de
chegar a todos, ou então estou só ligeiramente optimista, e penso que vou ali
para a praia, apanhar um escaldão na minha pele, a espera que depois ela caia
porque estar debaixo dela também é lixado e também não sei o que quero. É isto.
quarta-feira, 11 de junho de 2014
improvável
Meu Deus, de alguma forma, sinto-me
improvável. Porque gosto de me envolver e envolver-me é insuportavelmente
improvável. Sabes que é assim na maior parte das vezes - murmuro agora. Dias
houveram em que me perguntaram o que espero da vida. Não espero nada. Sou
demasiado orgulhoso para esperar o que quer que seja. Que correntes queres
quebrar? Nenhumas - respondi em ingenuidade. Digo-te que quero ser o último a
extinguir-me. Como o sol e, maravilhado pela imaginação, não posso deixar de
sorrir. Ele será o último. O último a extinguir-se, para lá de qualquer
constelação, para lá de qualquer suspiro, para lá de qualquer movimento, para
lá de qualquer natureza. Como aquele beijo que transcende sem transcender.
Sabor da promessa de ficar. Como único e singelo gesto de se realizar.
Deitas-te. Para o ar. Fechas os olhos e admiras o escuro. O escuro do teu
interior, das tuas pálpebras, no fundo - e, tu sabes -, o escuro da testemunha
que és. Se existe um ponto de retorno, o ponto onde a tua mente desagua -
garanto-te - esse ponto está aqui. Vincado e definido. Anseias em aproximar-te.
Tens medo do que possas sentir. Fundes-te com o sempre e com o sempre de
sempre. Esquecer. Esquecido. Lembrar. Lembrado. Não voltes a ti hoje. Abraças
uma árvore. A vertigem do alto de um grito confundido e da memória obsoleta.
Temes o perfilar dos segundos, os minutos, as horas, os segundos outra vez, as
horas outra vez, os dias todos de uma vez. Acelera-te o coração - não sabes parar.
E vem-te à cabeça – sim, certo - as escolhas. As tuas tardes de quarta-feira,
de segunda-feira, de sexta-feira, as tardes que forem. Dias da semana em que
escapavas e te escondias com uma pungente palavra por revelar. Uma palavra por
dizer. Algo que não saía. Uma palavra que se podia imolar no limiar dos
sentidos e que desperta em ti a eterna lembrança. Estás aqui. Não acreditas que
estejas, e não acreditas no que vês, mas estás. Se ao menos eu pudesses
acordar. Mas, meu Deus - quem quer que sejas, carne e osso, ar e sal, meu Deus,
eu devo ser improvável. E, no limiar deste caleidoscópio de sangue e tecidos,
esqueço sentidos e perco-me. Não demoro muito, saber-me partido. É sempre
assim.
quinta-feira, 5 de junho de 2014
dentes no chão
Tenho um lua gorda, estúpida e libidinosa pendurada na garganta, no gargalo gasto, ávido de saliva, espelho do que não tenho, não sei se morra na morte que não quero ou o quê, fundo diluído, desespero o meu, tradição que não quebro neste mundo que é teu, monstro asqueroso que me bate à porta que quero abrir, com os dentes no chão já não sei o que é rejuvenescer. Sou amputado de nascença.
segunda-feira, 2 de junho de 2014
subtracção de mim mesmo
Tenho os braços dormentes, alma e corpo exauridos, sou uma colecção de dias errantes carcomidos por acasos, sopas de cavalo cansado que engulo na ânsia de não deixar que o meu esqueleto desmaie nos precipícios da doença, e de ser triste e deslocado na equação com resultado igual a um conjunto vazio
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