Fecho
as portadas do quarto. Deito-me na cama qual barca fúnebre, altar de preces e
lamentos gastos. Deixo-me ir no bulício das vidas, vidas inúmeras que tentámos
envergar, mentindo nas palavras confusas e cindidas. Há gritos na rua, porrada
entre bêbedos do tasco da frente, uivos de cães rafeiros, sirenes da bófia. O
costume. A vizinha de cima geme pela noite dentro, mais um orgasmo, mais uma
volta no carrossel com aquele namorado brutamontes que malha no ferro e que não
diz bom dia a ninguém. O vizinho debaixo bate nos miúdos, enquanto a mulher
estende a roupa gasta pela lixívia. A puta do lado há-de sair por volta das
23:35 para ir atacar a carteira daqueles que de dia maldizem mas que de noite e
madrugada fora perseguem. Amanhã ou depois, há-de vir entregar o «Paraísos
Artificiais» do Baudelaire que me pediu emprestado. E eu, à parte de tudo,
declamo vidas perdidas, desfeitas em lábios que se esqueceram de seduzir,
noites vazias, ecos em becos escuros nos ossos do esqueleto cansado.
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