sábado, 5 de abril de 2014

os Faustinos

Hoje, no triste enaltecer de mais um feixe solar esparso ou inaudito, lembrei-me de uma família que vivia muito perto de mim. Eu devia ter uns, pelo menos, oito anos quando conheci a referida família. Lembro-me bem de vê-los passar -  vestidos de negro, olhar cabisbaixo, olhar próprio de quem lambe pedras, de quem não quer ver um caminho que existe à frente, próprio de quem já não acredita em qualquer caminho, próprio de quem já não sabe e, muito menos, sente o prazer de chegar a casa. Eram os Faustinos. Desde sempre me ficaram no coração. Ficam no coração todos aqueles de quem sentimos compaixão, argumento devido e mais que sentido de quem só sabe o que é espalhar pena. Sentia pena por aquela família e pelo triste desenrolar que era aquela existência em conjunto. Senti – confesso, descabida e advertidamente. Lembrei-me deles. Os dois filhos mais novos, recolhiam às portas todo o cartão e mais algum que encontravam. Vendiam-no a oito escudos e cinquenta centavos ao quilo. Passavam à minha porta com um carrinho verde. Tinha duas rodas e um tabuleiro onde depositavam o cartão para ir vender sabes-se lá a quem. O mais novo chamava-se António e tinha um dente que não tinha. O irmão a seguir era o Joel. Eram onze irmãos. Fortes e robustos, devido a quem vive na pobreza de casa, pobreza de alma e corpo. Comiam muito pouco, pois muito não havia, e muito menos o que se poderia dizer de suficiente. Viviam assim: a passear o carrinho carregado de cartão, para vender a um filho da puta qualquer que os haveria de extorquir até ao tutano magro e submisso. Nunca me esqueci deles. O irmão mais velho matou-se – o David. Diziam que se enforcou. Também dizem que quando uma pessoa se enforca que se vem. Ejacula. Urina-se. E tudo o mais que enoja os mais sensíveis. Foda-se, David. David derrotou Golias. Por que não tu? O cartão, mesmo molhado, também é difícil de esquartejar. E, por entre silvas, lá iam os irmãos a empurrar o carrinho. Era assim que os via. Hoje, o carreiro de silvas e amoras nada mais é que uma estrada. Passam carros. Há uma urbanização, um condomínio fechado, uma pastelaria com bolos ricos e para ricos. Dos Faustinos nunca mais soube nada, com excepção do António. Vi-o aqui há uns tempos numa discoteca onde há o baile de velhas. Fui lá porque gosto de ver onde me vejo no futuro. Estava com uma loura gorda e pagava-lhe bebidas. Beijava-a intensamente. Estava feliz – via-se-lhe no olhar. Fiquei contente. Saí já torto daquele antro de engate, sozinho, e a pensar que devia ter recolhido cartão quando era mais novo.

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