Hoje, no triste enaltecer de mais um feixe solar esparso ou inaudito, lembrei-me de uma família que vivia muito perto de
mim. Eu devia ter uns, pelo menos, oito anos quando conheci a referida família. Lembro-me bem de vê-los
passar - vestidos de negro, olhar
cabisbaixo, olhar próprio de quem lambe pedras, de quem não quer ver um caminho
que existe à frente, próprio de quem já não acredita em qualquer caminho,
próprio de quem já não sabe e, muito menos, sente o prazer de chegar a casa.
Eram os Faustinos. Desde sempre me ficaram no coração. Ficam no coração todos
aqueles de quem sentimos compaixão, argumento devido e mais que sentido de quem
só sabe o que é espalhar pena. Sentia pena por aquela família e pelo triste
desenrolar que era aquela existência em conjunto. Senti – confesso, descabida e
advertidamente. Lembrei-me deles. Os dois filhos mais novos, recolhiam às
portas todo o cartão e mais algum que encontravam. Vendiam-no a oito escudos e
cinquenta centavos ao quilo. Passavam à minha porta com um carrinho
verde. Tinha duas rodas e um tabuleiro onde depositavam o cartão para ir vender
sabes-se lá a quem. O mais novo chamava-se António e tinha um dente que
não tinha. O irmão a seguir era o Joel. Eram onze irmãos. Fortes e robustos,
devido a quem vive na pobreza de casa, pobreza de alma e corpo. Comiam muito
pouco, pois muito não havia, e muito menos o que se poderia dizer de
suficiente. Viviam assim: a passear o carrinho carregado de cartão, para vender
a um filho da puta qualquer que os haveria de extorquir até ao tutano magro e
submisso. Nunca me esqueci deles. O irmão mais velho matou-se – o David.
Diziam que se enforcou. Também dizem que quando uma pessoa se enforca que se
vem. Ejacula. Urina-se. E tudo o mais que enoja os mais sensíveis. Foda-se,
David. David derrotou Golias. Por que não tu? O cartão, mesmo molhado, também é
difícil de esquartejar. E, por entre silvas, lá iam os irmãos a empurrar o
carrinho. Era assim que os via. Hoje, o carreiro de silvas e amoras nada mais é
que uma estrada. Passam carros. Há uma urbanização, um condomínio fechado, uma
pastelaria com bolos ricos e para ricos. Dos Faustinos nunca
mais soube nada, com excepção do António. Vi-o aqui há uns tempos numa
discoteca onde há o baile de velhas. Fui lá porque gosto de ver onde me vejo no
futuro. Estava com uma loura gorda e pagava-lhe bebidas. Beijava-a
intensamente. Estava feliz – via-se-lhe no olhar. Fiquei contente. Saí já torto
daquele antro de engate, sozinho, e a pensar que devia ter recolhido cartão
quando era mais novo.
Sem comentários:
Enviar um comentário