sábado, 31 de maio de 2014

rei sem reino

Sou capaz de te compreender no teu sofrimento. Tu que sempre foste rei.
Caído agora que estás, derrotado por ti próprio, esquecido por todos, calculo que não será fácil estar na tua pele e vestir de manhã o corpo que vais mal tratando.
De doente que está, de culpa e vergonha que são mantos que carregas e tentas abandonar quando, no final do dia, bebes o último trago de vinho.
Dizes-me que tens os dentes a apodrecer, dentes castanhos da acidez do traço da uva madura,
que te estás a cagar para o aspecto que tens, pois a ucraniana com quem andas a foder, não quer saber do sofrimento que os teus olhos escuros e vazios estrebucham, porque o único interesse que tem é no prazer que o teu caralho lhe poderá dar.
Consigo te compreender quando me dizes que não és capaz de viver sem o vinho.
Juro que. Consigo.
Tanto tu como eu, ambos sabemos onde vais acabar, e não será a arrumar carros em Lisboa, como me disseste enrolando as palavras, a juntar trocos que vais estourar num tasco qualquer ali para os lados da Almirante Reis, tu que és rei sem reino, vais acabar na cova. E, porventura, será aí que encontrarás, por fim, a paz que te foge há tanto tempo.
Consigo te compreender, porque me revejo noutros tempos, envergando igual desespero, igual dor, igual destempero pela vida, igual desolação e passeios percorridos na indisposição infinita, o corpo dobrado para vomitar o que se acabou de meter e que já não cai no fundo do estômago que arde.
Vejo-te curvado sobre muros, agarrado para não estatelares no chão o rosto que já não tens, a cara nas paredes carcomidas, feições torcidas à força do esófago queimado e tu,
rei que és, nada saberás do que te sei.

Mas são assim os caminhos de cada um. Faz boa viagem, amigo.

Sia - Breathe Me

Be my friend.



quinta-feira, 29 de maio de 2014

diários

Hoje acordei com o telefone a tocar. Ouvi-o na distância a que o sono se me impunha. Estremunhado, atendi. Era a _________. Amiga próxima e querida. Perguntou-me se me tinha acordado, disse-lhe que sim, mas que não havia problema, que já era mais que tempo de estar acordado, só que a minha noite tinha sido difícil. Então, ela disse-me que a dela também não tinha sido nada fácil. Que esteve acordada até amanhecer, a ler dos diários que tinha escrito há imenso tempo. Acontece, que nalguns dias – disse-me – escrevi sobre ti. Há três ou quatro anos. Disse-me que, de alguma forma, lhe tinha feito companhia na insónia. Reportou-me para aquela época de miséria, desgraças, amores estilhaçados, crenças desfeitas, sonhos perdidos, desavenças entre queridos, noites brancas de desatino, noites em que nada parecia fazer sentido, desabafos íntimos. E foi assim que acordei, com a sensação boa de ter sido cúmplice desta noite inquieta, agora no presente, mas sempre com a __________ no coração.

quarta-feira, 28 de maio de 2014

segunda-feira, 26 de maio de 2014

23:35h

Fecho as portadas do quarto. Deito-me na cama qual barca fúnebre, altar de preces e lamentos gastos. Deixo-me ir no bulício das vidas, vidas inúmeras que tentámos envergar, mentindo nas palavras confusas e cindidas. Há gritos na rua, porrada entre bêbedos do tasco da frente, uivos de cães rafeiros, sirenes da bófia. O costume. A vizinha de cima geme pela noite dentro, mais um orgasmo, mais uma volta no carrossel com aquele namorado brutamontes que malha no ferro e que não diz bom dia a ninguém. O vizinho debaixo bate nos miúdos, enquanto a mulher estende a roupa gasta pela lixívia. A puta do lado há-de sair por volta das 23:35 para ir atacar a carteira daqueles que de dia maldizem mas que de noite e madrugada fora perseguem. Amanhã ou depois, há-de vir entregar o «Paraísos Artificiais» do Baudelaire que me pediu emprestado. E eu, à parte de tudo, declamo vidas perdidas, desfeitas em lábios que se esqueceram de seduzir, noites vazias, ecos em becos escuros nos ossos do esqueleto cansado.  

domingo, 25 de maio de 2014

votar

é como mandar uma rapidinha. Há um grande alarido à volta da coisa, demora um minuto e fica a sensação de dever cumprido.

sábado, 24 de maio de 2014

Dead Combo - esse olhar que era só teu

a casa

Olho pela janela. As luzes cintilam como olhos que piscam. Olhos que, demasiado tempo no escuro, perderam a habilidade de se manterem focados no que vêem. O caso é que nada vêem no escuro e, então, quando colocados perante a liberdade de luz, receio bem, terem perdido a capacidade de a aguentar. Então piscam e fecham-se, se bem que temporariamente. Olho pela janela. Lembro-me do Joaquim – o esquizofrénico do bairro. Não sei bem porque me chegou esta ideia. A ideia dele. Esqueço-o. Não é aqui que me quero centrar. 
Mas os olhos piscam-me na escuridão da casa. A casa sossegada e eu lá permaneço. Derrotado e caído. À procura de reagir, à procura de uma forma de não cair, mesmo já tendo caído. Inevitável é a capacidade de nos negarmos. Deito-me no sofá – ali – onde estou, só e perdido; por entre ruídos de carros que nunca terminam, a névoa da noite embrenhada de gases tóxicos e fedorentos. Se me cheirasse bem  – que faria? Um perfume, talvez. Mas não. Foi assim que fora decidido desde do dia em que, por via da necessidade aterrei aqui qual dissidente desesperado sabe-se lá pelo quê. Amor não o era, pelo menos – asseguro. Foi assim decidido. 
Tudo o que fiz foi nesse sentido. Sem saber, em todas as devidas alturas, fui seguindo à risca as indicações para não me falhar à tarefa. Fi-lo na perfeição. Nunca errei. Estou aqui nos erros de não ter errado, depois de ter percorrido cada metro, cada quilómetro – sem enganos. Há uma passagem na bíblia, e da qual gosto muito, que diz qualquer coisa como 

«os olhos são a lâmpada do corpo. Portanto, se teus olhos forem bons, teu corpo será pleno de luz. Porém, se teus olhos forem maus, todo o teu corpo estará em absoluta escuridão. Por isso, se a luz que está em ti são trevas, quão tremendas são essas trevas»

 - Mateus; era bem de se ver uma passagem que nos aconselhasse a via das escolhas rectas e íntegras, senão todas elas, nos erros dos erros…

quinta-feira, 22 de maio de 2014

coração atado

Desce por mim uma culpa quase vergonhosa de tanto me pertencer. De tanto me possuir. De tanto – meu deus – que não há fim, na mais dura das maldições me fazer sua.
Receio não me distinguir. Esta pérfida obscena, pela qual me faço trespassar, poderia muito bem ser enfeite de manto gelatinoso, que eu, inutilmente – assinalo –, jamais teria capacidade de despir.
Falta pois, se não faltar mais alguma coisa, a vontade que a faça estremecer, a ela, à culpa; estendida sobre mim, escorre devagar e vai sorrindo num estúpido frenesim.
Quando por me ser escopo, me chega à noite e eu, julgando-me pesado cansaço, pretendo estar entregue ao merecido descanso, eis que no silêncio disfarçado me chega o bulício da sua confusão. E sem apelo nem misericórdia, esta puta velha de olhar desprezível, leva, uma vez mais, a sua de vencida e sem demoras arrasta o meu coração atado madrugada fora. 

terça-feira, 20 de maio de 2014

...

Guardamos cá dentro tudo e mais alguma coisa, capas de revistas com vedetas de sorrisos trabalhados para rasgar corações, implodir estruturas de adolescentes que levam porrada mental na escola, velhos doentes e capazes de todas as molestas na esperança de cerzir uma juventude perdida e esgotada, guardamos tudo cá dentro, como se as paixões deixassem de ser paixões porque de repente o vento passou a soprar de outra direcção e, no fundo, não queremos saber do próximo para nada porque o que conta é termos a mão no dinheiro do nosso bolso enquanto que a outra joga bilhar ao sabor de estados de pornografia, animais e outras divindades de filmes rascos e deliciosamente obscenos. A civilização é um caralho de um fracasso, onde se destaca quem mira com olhos raiados de sangue a namorada do outro, enquanto a mesma se roça nos tomates de um terceiro, e já toda a gente deu voltinhas nas camas coçadas com quase toda a gente. Somos rotos, esfarrapados e omissos, queremos tudo sem desejar verdadeiramente nada.

segunda-feira, 19 de maio de 2014

sina

Nega as tuas trevas e negarás a tua verdade e essência 
Triste sina de quem se faz sem fazer 
Nas graças desprendidas e fáceis. No desfile inútil do que é - dizer-se vivo.

Stone Temple Pilots - no memory

domingo, 18 de maio de 2014

têmporas

Tenho as têmporas frias
À margem da tua ausência
E chego mesmo a partir espelhos
Por me detestar ver assim

Só.

sábado, 17 de maio de 2014

Mão Morta - ventos animais

sábados

Aos sábados de manhã, na pastelaria rica e fina, que é como quem diz pipi e cocó, juntam-se as famílias, principalmente as que vivem no condomínio onde a mesma se encontra. É o choro dos bebés, as correrias desenfreadas dos garotos em festa, as conversas entre pais, as trocas de «o meu filho isto», «a minha filha aquilo», e adiante...
Gosto de observar, ainda que de soslaio, estes encontros matinais e habituais. São quase sempre as mesmas pessoas que aqui vêm e toda a gente se conhece, nem que seja de vista. Às vezes, penso naquilo que elas, as famílias, poderiam escrever sobre mim; um tipo com ar ensonado, solitário, e que bebe dois ou três cafés, enquanto a mão direita segura um cigarro, porque a esquerda se ocupa em escrever sobre sabe-se lá o quê.

Que escreveriam?

sexta-feira, 16 de maio de 2014

«manhã submersa»

Ainda estremunhado, dirijo-me para o quarto de banho. A noite foi de naves espaciais, seres de um outro mundo, amigos próximos e amigos distantes, enfim, toda ela um cansaço. Por onde terá o meu espírito andado?
Visto-me mecanicamente, é assim há algum tempo. Uma camisa e umas calças de ganga e pronto para sair. Esqueço-me do pequeno almoço, comerei  mais tarde. Gosto de sentir a sensação de estômago vazio, fome, buraco negro no corpo cada vez mais magro.
Sento-me nas cadeiras da esplanada do café do bairro. Sempre as mesmas caras. Olho para o lado, e vejo uma mãe de volta do telemóvel. Obcecada percorre com os dedos o visor do aparelho, desligada do que se passa à sua volta, mas ligada ao mundo pelas ondas invisíveis. Na cadeira ao lado, está, presumo, o filho. Calado e olhar fixo numa torrada que vai trincando. De vez em quando olha para a mãe, mas a mãe está concentrada no telemóvel. Ambos, silenciosos, são habituais por estas paragens. E o cenário é sempre o mesmo. Dois seres tão próximos e tão distantes. 
Bebo o café e acendo um cigarro e, de súbito, sinto-me livre por ter o telemóvel para reparação e não estar agarrado a ele como uma lapa na rocha. 

quinta-feira, 15 de maio de 2014

o teu corpo

Sonho com o teu corpo. Não com o teu corpo «corpo». Com o teu corpo como mundo de um todo. De um todo teu. Sonhar é o que sei fazer melhor. Não sei nada sobre ti. Sei que, às vezes, nos vejo a dançar sob uma lua prenhe numa noite de verão qualquer a sul. Vejo o reflexo do mar como tela dos nossos movimentos; que para lá da imaginação fossem eternos. Sinto-te viva, quando teimas entrar assim, com os pés descalços na areia dos meus enganos, nessa tal noite de verão toda ela feita de sentidos rasgados. Nem conheço o cheiro da tua pele, mas sei que teria o resto da minha vida para me embrenhar nele. Conheço-te a voz, mas nem sequer sei se gostas do azul, ou se preferes outra cor qualquer. Chamas-me quando não tenho medo de me entregar, sabendo que ando aos caídos, sem rumo, sem sorte alguma. Podia cair em ti, se não fosse o resto que me come os restos. Sou carne pisada, hematoma feito de pancada, pele arroxeada, cicatrizes feitas e gravadas que contam histórias de precipício. Tenho por hábito escolher os caminhos mais difíceis e complicados, estou habituado a enamorar-me pelos impossíveis, pelos feitos indómitos e inefáveis. Sério. Conheço-me na aflição. Depois do teu corpo, depois destas viagens astrais que faço na minha cabeça mirabolante, surge-me quase sempre um sorriso de vencido, e com o esgar de desprezo por mim próprio, exclamo – que se foda tudo o que anda ao contrário. 

quarta-feira, 14 de maio de 2014

corda

Há tanto tempo que não me chego. Há tanto tempo que fujo do que não tem fuga. Há tanto tempo que persigo outro que não eu. Há tanto tempo que aguento com essa carga, esse peso que as fugas encarnam. Fujo, e tento esconder-me, mas o outro – este que escreve – não me dá qualquer descanso. De vez em quando chama-me. De vez em quando bate cá dentro, lá do fundo, lá de dentro de tudo o que não tem nome. De todas as coisas impronunciáveis. E esta solidão que ataca escolhe de forma cindida cada pensamento que massacra. Dominar. Dominar estes pensamentos destrutivos. Esta corda no pescoço que não se quer roer a ela mesma.

segunda-feira, 12 de maio de 2014

movimentos perpétuos

Estou ali assim. Sem me mover. Estático - completamente estático. À minha frente está um homem e uma mulher. Gesticulam. Ouço-os a rir. Gesticulam, como quem chama, como quem quer muito algo, como quem quer apertar, como quem quer abraçar. Sim - essa é a palavra certa. Abraçar - o abraço maior. Ouço-os. Riem-se. Chamam por um nome que reconheço, chamam por mim. Não sei porque o reconheço se nem me conheço. Não sei quem sou, nem onde vivo – mas reconheço. Não tenho nome mas tenho nome. Tenho um nome. Chamam-me e riem-se muito. Não sei quem são estes dois gigantes, apenas sei que sorriem muito para mim. Eu sorrio de volto. Solto sons desconectados e cortados na ânsia de lhes responder. Caio. Tento equilibrar-me. Uma e outra vez - vezes sem fim. Uma e outra vez. Caio novamente. Eles chamam mais por mim, gesticulam freneticamente numa alegria desmedida. E eu equilibro-me em evidente esforço e dou passos cambaleantes e inseguros. Até que os alcanço e em festa erguida levantam-me ao ar. Contentes. Apetece-me cantar mas ainda não consigo porque foi assim que com um ano de vida que comecei a andar.

sábado, 10 de maio de 2014

madrugada branca

Madrugada fora chegas-me pé ante pé. Sem te anunciares. Tem sido assim. A verdade é que tento esconder a verdade que já não quer ser escondida. Tento apenas, e falo comigo próprio como um demente sem crença ou salvação possível. No fim, ninguém se salvará. Não haverá paraíso, nuvens, céus, Deus ou alguém que nos estenda a mão sobre o vazio do espaço. Um dia o corpo arrefecerá.
A verdade é que me tens chegado, e tenho negado a tua face da maneira que me é possível negar. Mas falho sempre que tento. Tantas vezes falhei.
E tenho a sensibilidade a correr-me no sangue escuro e denso com o qual poderia escrever na folha esbatida a tua ausência. Tenho-te em mim e já não sei dizer que não, e muito menos pensar que não.
Madrugada fora chega-me a tua silhueta decorada por palavras que conhecem a foz de minha sobriedade. Ela é tua também. Desenho no ar gestos imperceptíveis na busca do significado de tudo isto. Recuar, se for preciso. Recuar, sim, mas até onde se não saio do mesmo lugar? Deste quarto escuro onde penduro a roupa que vesti com cuidado de manhã, para que me visses como uma pessoa normal, e o que é o normal quando tudo nos enche e depois se nos falta, esgotando saliva, tutano e osso? Temo que me falte o rosto quando te vir novamente. Temo em não te chegar como me chegas, clara e objectiva. E as palavras que queimam e que tanto tropeçam na língua quente, na ânsia de ser crepúsculo no estio do deveres. E que deveres?
Batem as notas nos tímpanos, bate a música na qual poderia viver se não fosse esta necessidade de ter que comer, dormir, enfim – Deus que não acolhes ninguém – descansar.
Madrugada fora chegas-me e mostras-me que os caminhos são feitos de encontros aos quais falhámos. De encontros aos quais não aparecemos. E a pedra de ara que deixámos sem ninguém para testemunhar fosse o que fosse. É branca – a hora. A hora de esconder a verdade que já não pode ser escondida. Esmoreço na insónia que tem o teu nome. Amanhã dormirei vivo e serei fantasma de mim mesmo contigo peso sobre ombros. Talvez não me incline sobre as canelas exaustas. Amanhã, talvez, nada.

sexta-feira, 9 de maio de 2014

antídoto

Podes fugir e podes adiar as tuas origens. Podes escondê-las e podes até mesmo manipulá-las. Podes fazer isso tudo. Mas, a verdade - e ela nem sempre te agrada à vista -, a verdade é que a tua natureza está sempre dentro de ti. Os dias felizes que viveste e os que se extinguiram. Os teus pais, amigos, conhecidos, até mesmo os desconhecidos que se te cruzaram, construíram-te sobre essas fundações. Está tudo dentro de ti. E tu podes correr à volta das tuas próprias ilusões, disfarçar o que está à tua frente como bem te aprouver. Decorares o palco com as tuas maiores serpentinas coloridas das virtudes. Podes fazer isso tudo. Mas jamais, em condição alguma e sobre qualquer manha, podes tentar enganar o teu coração. Ele tem o antídoto para todos os venenos. Até mesmo os teus. Aqueles que, elegante e sorrateiramente, lhe tentas injectar. Falharás, contudo - garanto-te.

quinta-feira, 8 de maio de 2014

noite

À noite, quando me deito e tu já dormes, fico por ali assim. Só a olhar para ti. Depois, passo as mãos pelos teus cabelos quentes. E ali fico a urdir os teus sonhos na escuridão. Então, os teus sentidos despertam ao de leve e suavemente sorris. Amanhã não te vais lembrar que te acariciei - sussurro ao teu ouvido. Tu acenas que sim - que sim, que te vais lembrar -, diz-me a tua expressão tranquila. Mas eu sei que não e, ali só comigo, fico mais um pouco a descobrir, mar, terra e lua nos teus cabelos. Sinceramente, confesso que prefiro que não te lembres; que na fronteira e limiar do teu mundo de sonhos gigantes e o quarto sob a luz ténue, as minhas mãos te disseram que sou teu.

imortalidade

Um dia, mais tarde, gostava de ser colocado numa câmara criogénica. Se por um lado me aborrece a ideia de uma imortalidade amorfa, por outro, a ideia de uma fragilidade mortal assusta-me. Talvez, debaixo de um manto gelado, a morte não me assombre e o fado eterno não me aborreça. Ficaria ali assim. Sem temer e entediar-me com coisa alguma. E que se fodesse a realidade.

quarta-feira, 7 de maio de 2014

voluntariado

Faço voluntariado ao serviço da junta de freguesia, que isto de estar desempregado não é nada fácil. Uma vez por semana, leio contos num lar de 3ª idade, ou de seniores, se preferirem. Actualmente, estou-lhes a ler «Histórias Maravilhosas do Oriente» da autora Pearl S. Buck. Acontece que ontem encontrei uma psicóloga muito simpática do IEFP com a qual estive à conversa. Quando se despediu de mim disse-me: também quero chegar a velhinha e ter um jovem a ler contos para mim. São estas coisas, para além dos comentários que ouço no lar, que enchem o coração e que me fazem sentir de estar a fazer algo por alguém e, ao mesmo tempo, por mim. Amanhã vou acompanhar os «meus» velhinhos à feira de Maio e vai ser óptimo.

terça-feira, 6 de maio de 2014

asa negra

Entra no átrio o coração de asa negra com missão de ceifar. As paredes estão podres, o estuque vai caindo lentamente. As mulheres gemem, os bebés, aos seus colos, choram e ali há o desespero e a doença como último perdão. A súplica suprime a dor. Entra a asa negra com o martelo na mão. Juíz d'alma em fraco coração. No ar paira o odor acre de urina, vómito e nenhuma resolução. Alguém vai estatelar-se, alguém vai morrer, alguém escreverá, em vão, a sua despedida deste mundo inglório e fútil. E ali estou. Sem saber que pena é aquela que os vidros teimam em espelhar. 

segunda-feira, 5 de maio de 2014

tudo a piorar

Por mais que digas que sim - que vai melhorar - sabes que isso não vai acontecer. Não vem aí nada de bom. O amor não cura nem traz felicidade. Aquela por quem te apaixonas nunca te salva, porque tu é que te precisas salvar. Aquela por quem te apaixonas, está apaixonada por outro.
O rei que é de espadas e que devia ser copas, estraga-te a mão e leva-te mais uns cobres para o bolso de outro. A questão é que - tudo tende a piorar.
Trabalhas mais e recebes menos. Acreditas que as despesas vão descer, quando na realidade elas aumentam de forma inversamente proporcional ao poder que o teu corpo poderia ter - ao poder que o teu corpo tem para poderes trabalhar mais de 10 horas.
O teu corpo vai entrar em exaustão. Vai desidratar-se, enquanto as mulheres ficam mais bonitas e tu mais velho. Nada de bom virá por aí e não tardará a hora de te veres sentado num banco de jardim a atirar milho aos cabrões dos pombos, que antigamente eram inimigos mortais por te cagarem o carro, e a assobiar às gajas boas de 20 anos, tecendo pensamentos lamuriosos de como era bom no tempo em que acreditavas que nada disto seria assim. Que a tua vida seria boa. Mas é tudo mentira, a tua ilusão criada como Deus para te suportar onde, um dia, julgaste ser mais pequeno e, pior que tudo, sabias ter razão.
Tudo é mau e tudo se destrói. Não tarda estás velho, com a casa a cair de podre, a fazeres as tuas necessidades em alguidares porque já não te estás para arrastar até à casa de banho, enquanto esperas avidamente a chegada do carteiro com o cheque minúsculo e roto da reforma que tu trocarás por uns belos shots de bagaço e tabaco de enrolar.
Gosto de pensar que sou bipolar e que me dá para isto e que amanhã acordo a pensar que sim - que tudo é bom.

domingo, 4 de maio de 2014

eu transpiro estilo

Olha-se à volta e percebemos que anda toda a gente enganada. Hoje em dia, damos primazia a coisas que nada têm a ver com verdadeiro propósito de andarmos cá. Coisas fúteis e inúteis. Coisas que não servem para nada a não ser mera ostentação. Normalmente, são as pessoas mais inseguras e as que precisam de uma qualquer forma de reconhecimento que admiram e desejam essas coisas. Nem sequer se questionam sobre a forma e o motivo desse possível reconhecimento. Esquecem-se as verdadeiras amizades, preterindo-as por aquelas do género «palmadinha-nas-costas-tu-és-muito-fixe-eu-não-te-contrario-em-nada-nem-te-digo-aquilo-que-deves-ouvir-mas-só-aquilo-que-queres-ouvir.» Esquecem-se valores como a solidariedade, entendimento e partilha porque o importante é parecer-se cool. Por entre estas cortinas de comportamentos, acaba por ser difícil abrirmos as nossas próprias cortinas, de maneira a admirar o esplendor daquilo que é realmente a essência da nossa existência. A janela aberta não esconde nada, mas o segredo está mesmo aí, em abrir a janela - a janela do coração. E atenção, que falo de mim e do lugar que por vezes também ocupo.

sábado, 3 de maio de 2014

estética

É preciso ser-ser estúpido e ignorante quanto à noção de perfeição. Um estado que não condicione a escolha da esferográfica, caneta de tinta permanente, lápis ou pena. 
É preciso ser-se ignorante para com tudo para que, no fim, a ideia de felicidade sobre algo, possa, pelo menos remotamente, existir. Então, por que motivo forças tanto a tua mão?
Relaxa os músculos e escreve mal. Deixa. Deixa-te. Deslizar suavemente sobre o papel, e arredar para longe, bem longe, essa ideia de estilo pré-concebido, estética nascida sabe-se lá onde e sob que parto, ou nome de parto alguma vez dito ou pronunciado. 
Esta é a tua voz escrita sobre fogo, mar, terra e água de ti. E é nela que tens de confiar. Confia. É nela que tens de viver e não debaixo de uma tela concebida única e exclusivamente para dar um prazer excelso a um outro olhar menos discreto. Teu ou não.
Vive-se no belo. Suga-se tudo o que nos apraz, olhar, coração e alma. E nesta sempiterna contradição, porque o que não vemos raramente se expressa no nosso interior, não rompemos com o que há a romper, não rasgamos o que há para rasgar. A primitividade de outras eras.
Três da manhã. 
Sono nenhum me atinge. Fico por aqui. A contar arrependimentos, de segundos que não durmo, de horas em que não descanso e que, amanhã, me vão pesar como fardo de chumbo.
Hoje sou feito disto. De desassossego. 
Três da manhã. 
Hora de fingir que não me preocupo com a estética. Porque sim, preocupo-me.

sexta-feira, 2 de maio de 2014

sonho

Esta noite trocaste-me as voltas e, inusitadamente, apareceste-me em sonhos. Sem convite, sem te anunciares. Desorientas-me - digo-te, agora acordado.
Seguraste-me as mãos e colaste-as junto do teu ventre. Disseste-me que ia passar, que tudo iria ficar bem, que iria ser tranquilo, olha para mim agora, agora que até acredito. 
Acendo um cigarro. 
«Tu-do bem». 
Não sei a que te referias, conheço pouco do tudo e muito menos do bem. Quis compreender; quem eras e ao que vinhas, se é que vinhas com algo. Um dia, talvez me expliques as tuas palavras oníricas, com teu tom de voz a roçar um reino celeste. Todo um reino desconhecido. Sorrias.
Não me recordo do que trazias vestido, recordo-me, sim, da brisa que te acompanhava o corpo. Seria possível que viesses nua? 
Despido fiquei, de manhã, ao acordar e reparar que as minhas mãos repousavam em mim e não em ti. Quem sabe se me chegas outra vez hoje.
Ou talvez amanhã. Não te atrases.