segunda-feira, 22 de junho de 2015

a desilusão do imaginário

Estou a pensar que arrancar-te assim desta forma, é como desiludir o imaginário. A forma que é senão turbilhão, desgraça e tormenta. Cai a noite, lenta e pragmática. Não existe volta. Logo à tona, como nós – sem retorno. Que já nada existe. Encetar um início seria impossível e, com ou sem cobrança ao destinatário, não me venhas dizer que tudo é possível. Somos ruína de nós próprios. Nem os teus lábios sobre os meus fazem já qualquer milagre. Deus não rasga a meio o Oceano que nos separa. Que Deus? Cai a luz em gotas lentas sobre a cidade. Neste fim de dia sobra uma corrente de ar já fria; o pôr-do-sol sempre bonito quanto mais não seja só porque sim. Porque toda a gente o diz. É bem.

Morremos. 

Recordo agora o teu hálito. Recordo o silêncio que nos separava depois de fazermos amor, paixão, sexo, desespero e desgraça. Dias e dias em que nem sabíamos o que era sair à rua. E nus, à parte de um mundo no qual só tu acreditavas, ficávamos debaixo do nosso tecto em chamas. Arrancar-te assim, desta forma, é cruel para todo e qualquer sentido que tenho de nós. 

Nunca mais fui gente depois de te ver partir de um cais que nunca teve qualquer nome, de um cais de onde só se avistavam os mastros de barcos já naufragados. Esperneei. Agarrei-me ao estômago, essa víscera quase podre que trabalhava apenas para ti. E onde estava eu? Numa fotografia – dias a fio. Uma fotografia onde aparecíamos como almas despenteadas, fantasmas esboroados à procura de uma casa para assombrar. Um dia queimei a puta da fotografia no chão daquele quarto nefasto, e quase que incendiei as cortinas japonesas que me ofereceste para que os vizinhos não nos vissem deitados na cama. 

Quando saí daquela casa deixei tudo como estava. Nem um móvel trouxe. A senhoria agradeceu. Perguntou-me apenas o que tinha ardido no quarto. E eu respondi - fui eu.



                                                                                                                          Outubro, 2012.

sábado, 20 de junho de 2015

oeiras

descia sempre em passo acelerado. era comum a busca daquela felicidade estúpida, estéril e deserta para o visitar. no fundo - já o sabia - ia esfaquear o estômago tal como o fazia noutras ruas apáticas onde uma claridade irritante expunha a ignomínia dos seus dias. demorava-se pouco e falava pouco também. a clientela olhava de soslaio fingindo ler o jornal ou outra merda qualquer. depois, voltava a fugir como um cão abandonado, olhos como dois planetas a querer cuspir um corpo inteiro e doente para fora. debaixo de todo um céu azul, dobrado sobre si, esperava que uma morte não lhe chegasse, mas ao mesmo tempo desejava a vida e as tréguas dos enfermos que esperam a mesma na puta da cama. nunca me disse o nome dele, mas eu simpatizava com o gajo; sei, isso sim, que trazia sempre a mesma t-shirt. era amarela.

Alice In Chains - Shame In You Lyrics

quarta-feira, 10 de junho de 2015

verão regado

Há cidades antigas, desprovidas de gente e de almas que deveriam divagar, nunca se morre - digo -, cidades sem sol, orquestras que transpiram notas obsoletas, somos marginais e ambos sabemo-lo. Tua luz, tua sombra, teu sotaque sem apelo nem agravo, um gesto singelo do que poderias ser, um «talvez» na boca do coração exaurido, leve a misericórdia, de joelhos no chão, teus cabelos nas minhas virilhas, teu olhar sinuoso, o quase silêncio de morte no hiato do roçar indelével na pouca roupa que sobra, os chifres do diabo apaziguado na minha tíbia, as têmporas frias - até ao fim - suspiro. Passar por aí, na casa dos enganos, altares destruídos, pedras de ara ao mar, protecção suprema reduzida, os fios da electricidade fodidos, os bêbedos a cantar através das portadas abertas de par em par, a realidade distorcida nos contornos das paredes onde sou uma habitação sem assoalhadas, a imaginação parada, estanque a si mesma, a trovoada a reverberar no copo de cristal vazio, a eterna superfície árida na dor do esquecimento. Cuba tão perto, escritos carimbados pela maresia, Miami uma miragem. Tu e outro. Tu e eu, na cama de espinhos, cercados por velas e incensos, intoxicados pelo que é bom mas que não irá ser lembrado, lençóis molhados, verdades polidas, e a solicitude da atenção desvelada - somos marginais -, enquanto Glória, a única, lê o livro do desassossego para quem passa lá para os lados do Chiado. Não há fim que dure no Fernando. Pessoa ou não.

                                                                                                                Leiria, Junho ou Julho de 2014