sábado, 10 de maio de 2014

madrugada branca

Madrugada fora chegas-me pé ante pé. Sem te anunciares. Tem sido assim. A verdade é que tento esconder a verdade que já não quer ser escondida. Tento apenas, e falo comigo próprio como um demente sem crença ou salvação possível. No fim, ninguém se salvará. Não haverá paraíso, nuvens, céus, Deus ou alguém que nos estenda a mão sobre o vazio do espaço. Um dia o corpo arrefecerá.
A verdade é que me tens chegado, e tenho negado a tua face da maneira que me é possível negar. Mas falho sempre que tento. Tantas vezes falhei.
E tenho a sensibilidade a correr-me no sangue escuro e denso com o qual poderia escrever na folha esbatida a tua ausência. Tenho-te em mim e já não sei dizer que não, e muito menos pensar que não.
Madrugada fora chega-me a tua silhueta decorada por palavras que conhecem a foz de minha sobriedade. Ela é tua também. Desenho no ar gestos imperceptíveis na busca do significado de tudo isto. Recuar, se for preciso. Recuar, sim, mas até onde se não saio do mesmo lugar? Deste quarto escuro onde penduro a roupa que vesti com cuidado de manhã, para que me visses como uma pessoa normal, e o que é o normal quando tudo nos enche e depois se nos falta, esgotando saliva, tutano e osso? Temo que me falte o rosto quando te vir novamente. Temo em não te chegar como me chegas, clara e objectiva. E as palavras que queimam e que tanto tropeçam na língua quente, na ânsia de ser crepúsculo no estio do deveres. E que deveres?
Batem as notas nos tímpanos, bate a música na qual poderia viver se não fosse esta necessidade de ter que comer, dormir, enfim – Deus que não acolhes ninguém – descansar.
Madrugada fora chegas-me e mostras-me que os caminhos são feitos de encontros aos quais falhámos. De encontros aos quais não aparecemos. E a pedra de ara que deixámos sem ninguém para testemunhar fosse o que fosse. É branca – a hora. A hora de esconder a verdade que já não pode ser escondida. Esmoreço na insónia que tem o teu nome. Amanhã dormirei vivo e serei fantasma de mim mesmo contigo peso sobre ombros. Talvez não me incline sobre as canelas exaustas. Amanhã, talvez, nada.

Sem comentários: