segunda-feira, 14 de setembro de 2015

não tão forte

Era outubro de um destes últimos anos perdidos a toque de caixa bolorenta de memórias. Carreguei o carro, sabendo que era a última vez que o fazia. De alguma forma, a solidão que me envolvia os esqueleto era quase como um manto que me protegia de ti. Protegia-me do teu toque, que já nada queria saber ou perceber de abraços. Um abraço é incompreensível. E, uma vez mais, a vida de cigano, mala às costas ali - que podia eu ter feito para alterar o que fosse? Optei pela guitarra às costas, o livro de poemas no bolso, o tabaco de enrolar na caixa, a garrafa no porta bagagens. Passei pelo tasco do costume, despedi-me do Toni, do carteiro, da Lúcia, e nem me esqueci da empregada, a Ernesta. 
Chovia torrencialmente. Decidi meter-me à auto-estrada, conduzia a 60. Fazia filas, apitavam-me os apressados restantes condutores que nada sabiam do que eu tinha acabado de deitar fora. A vida é fértil em desperdícios. Às vezes, o ouro não inflama e muito menos seduz. Parei numa estação de serviço para abastecer e jantar já tardiamente. Na hora de pagar a gasosa e a comida, ofereci ao gajo da caixa o TAG HEUER com que me tinhas, contra minha vontade, presenteado no meu trigésimo sexto aniversário. Eu nunca gostei de andar com relógios no pulso. Inicialmente, o tipo pensou que era brincadeira, depois uma imitação qualquer bem conseguida, depois viu-lhe a veracidade e meteu-o ao bolso como se lhe tivesse passado umas gramas de uma merda ilegal qualquer. Recebi o talão. Ele atendeu o cliente seguinte. 
Arranquei para a estrada, três e tal da manhã, e agora sim, essa serpente mergulhada no escuro carente de almas vivas. Comigo só vinham os mortos, onde eu me incluía. Ouvi esta música repetidamente até estacionar o carro à frente de casa. Naquele dia, prometi a mim mesmo duas coisas: uma, que jamais correria cegamente atrás de troféus. A outra, de que pararia de tentar provar a mim próprio o que quer que fosse. Na primeira falhei, não se tratasse de uma promessa, a outra vou adiando como posso. Com o coração ou com a víscera, não importa. Mas sim, é uma promessa também. E que, para mais uma maleita minha, quebrarei. 
«Não tão forte quanto julgava ser».

quarta-feira, 9 de setembro de 2015

ninfomaníaca #2


Por Fernando K. Montenegro

»Meu querido, deixa-me dizer-te: és tão patético na cama. Fazes-te de macho cobridor, arrepias diálogos e preliminares com um simples «vou comer-te toda», mas no minuto a seguir, esparramas as tuas banhas na cama à espera que te faça o tão desejado broche.
És patético - repito - e agora compreendo o fardo que és para a tua mulher. É bom que nem saibas o prazer que ambas temos quando estamos juntas. É bom que nem imagines os espasmos que tenho quando ela me faz aqueles minetes em que, depois de me vir, encharco a cama toda. No outro dia - juro, seu estafermo - que me mijei toda. Por outro lado, é triste que não faças a menor ideia que ela seja uma amante melhor que tu, e que no fim das contas sejas tu o irremediável corno.
Mas que interessa tudo isso? De braços atrás da cabeça, refastelado como um porco na minha cama, postura de fodilhão das mulheres supostamente desesperadas, pareces um caralho de um novilho no expositor do talho.
Faço-te o «broche da tua vida», meto-te o dedo no cu como tanto gostas mas - ai meu deus - nem sequer se ousar falar disso. Ninguém pode saber, nem mesmo eu? Vens-te um minuto depois e, mais uma vez, fico-me pelas tuas promessas «vou comer-te toda». Deixas-te cair na queda onde já estavas e exclamas: foi o broche da minha vida! (és tão previsível, meu javali domesticado).
O que me salva o dia, é a ideia de saber que a tua mulher vem cá amanhã, porque, ela sim, sabe fazer do meu corpo um diapasão. Aquilo que tu prometes, meu labrego, ela faz - come-me toda, por inteiro. Mas, meu querido estafermo, eu até te compreendo, promessas não passam disso mesmo, não é?
- vou buscar papel para te limpares, querido.

long way home

Pagas. E sais a cambalear. Espera-te uma caminhada solitária pela estrada deserta. A noite, quente e clara, proclama alguns quilómetros sombrios, dentro de ti. Que contradição é esta? Altura é tramada em distância. De vez em quando, um carro abranda. Moonshiners.
»onde é que esta alminha vai?«
Acaba por acelerar logo a seguir e destino com ele. Passo por um tasco, discussão a sério cá fora, porrada iminente, cheira-me; fodeste a minha mulher e agora o quê, foi bom? - diz um - enquanto empurra outro ligeiramente mais baixo. «Não foi como pensas». 
Nunca é, fica-se sempre pela imaginação. Ela de cremalheira escancarada a foder o amigo do marido, e este que só pode imaginar-lhe o corpo rendido ao prazer alheio, a curiosidade mórbida que agora lhe alimenta a grande questão: foi «melhor» do que com ele, e teme que a resposta venha da parte dela: é mais homem que tu. 
Um grupo à volta tenta cercar os barris de pólvora. Olhos na rotunda longínqua. Sigo caminho, que esta peça de teatro não é para mim, não hoje, pelo menos. Depois, de repente, com aquilo tudo, incluindo o pó no ar e que me vai preenchendo pulmões e tecidos, vem-me à cabeça a confusão toda que o Milton debita quando os anjos são expulsos do cerco das harpas. Lúcifer do seu «Pandemonium» compra a aprovação dos outros traidores que, confundidos, nem sabem muito bem que a mão árida e pesada de Deus, os remeteu para o concílio da vingança e reconquista do reino celeste. Mas depois à laia do «dormi com a tua mulher, amigo» — «Melhor reinar no Inferno do que obedecer no Céu.» - diz ele, ele que supostamente tinha a beleza da estrela da manhã, e que fora muito amado pelo seu Amo.
O poder é fodido. E os ídolos, também. E como a mulher é o centro de tudo, e tudo começou como ela, é natural que, um dia destes, a ruína também chegue sobre a sua haste. «Foi inevitável» dirá a criatura, na tela que pinto; palavras essas que o corno há-de apagar com poções mágicas de rum, destilaria, ou outra merda qualquer. Dêem-lhes droga, dinheiro e sexo, que eles - humanos - fazem o resto; não será preciso puxar muito pelas cordas dessas patéticas marionetas - diz a estrela da manhã - eles fazem o seu próprio altar de degredos. Lúcifer no meio desta interminável recta. 
Já nem me lembro muito bem como chegar a casa. O Algarve é vazio. E eu também, gasto. Uma Lilith e um Robert Johnson no cruzamento mais à frente.
»a crossroad ia a perfect place to establish a pact with the devil«
«With a ten dollar guitar» - os blues dos amores funerários, quem beijou de morte quem?
E continuo no caminho de asfalto esburacado fora, agora com a tua cama no peito, locomotiva descontrolada a pisar-me desenfreadamente, sangue que me escorre por dentro e por fora, sangra este Carneiro de facada.
E ali ao fundo, encadeado por faróis de carros astrais, o teu corpo fino e frágil, desfolhado na madrugada, coração tatuado, amor nos lençóis com odor a velas de cemitério que ardem infinitamente sobre flores e coroas murchas. Quem vai destruir quem? 
De longe ainda ouço um ganido: «achas que eu merecia seu grande filho da puta?» Não, ninguém merece, mas trabalha para isso desde do dia zero, acredita.
Caminhar, caminhar, quase duas e meia da matina, que o corrector quer marina - dêem-lhes a tecnologia - diz a estrela da manhã. «Slide». Marla Singer de bafo gelado e um Pinguim que desliza. «You're a faker Marla»
Entro nos portões da Vila, urbanizações de famílias que amanhã empurram carrinhos de bebê para a areia da praia em silêncio, porque o doce há muito que não é amargo, mas sim ácido.
As ruas desertas, os bares e café fechados, Setembro como fim de romaria de desperdícios. Setembro como mês de tudo ou nada. Pelo corta-mato que faço, já sei onde estou, dois putos a comerem-se num pano de fundo de canaviais. »aproveitem enquanto essa merda dura« 
O corpo adormecerá com a alma e com o coração apedrejado, a bagagem fodida, carregada por ombros cansados, olhos desnutridos, a vida quase toda num instante de crenças abolidas.
Noite, quente e clara, toda ela nestes bafos que dou no último cigarro da noite. Azazel, dá-me tu uma cama, de exausto que estou, para que não sinta as costas em flagelo.
Dois minutos depois, a esperança neste gesto: o de rodar a chave na porta de uma casa alugada. Talvez, os pensamentos façam parte da renda. E fiquem cá, quando a bússola me orientar novamente para cima, para Oeste do meu Norte. O Algarve é vazio. 
«fodeste a minha mulher e agora o quê, foi bom?»
Agora, aguenta-te, eu sei que consegues.

quinta-feira, 3 de setembro de 2015

lamento

os
Morcegos que cantam
Na noite obscura, 
Ébria de dor
Órfã
Na nulidade dos teus olhos 
Vazios de sentimentos,
Vazados de esperança
Gritos desesperados 
Na linguagem subtil do teu corpo
Morno
Quase quente
Na ponta da língua escorre saliva 
Sobre os teus seios
Onde, de cabeça morta e de que me faço, choro mais uma vez.