Aqui há dias, bebia café com uma grande amiga minha quando fomos interpelados por uma senhora. Pediu-nos uma esferográfica só para «tirar aqui nota de um número de telefone». Nem eu, nem a minha amiga tínhamos connosco o objecto em causa e pedimos desculpa pelo facto. Somos especialistas em pedir desculpa. Por tudo e por nada - desculpa - talvez porque carregamos a culpa avidamente às costas. Mas a senhora não se ficou por aí; disse que já não vinha à «vossa cidade» há muito tempo, perguntou-nos, também, onde se poderia ir ao cinema, que uma amiga vivia ali perto mas que não atendia o telefone. Depois de termos dado a indicação solicitada, ainda ficámos a saber que um sobrinho tinha vindo há muitos anos estudar para a «vossa cidade», e que não tinha gostado das pessoas mas que nós «éramos uns verdadeiros amores». Ao despedir-se de nós, ainda perguntou onde era o Turismo, e a minha amiga anuiu fornecendo as indicações precisas para que a senhora não se perdesse. Enquanto se afastava, pensei que poderíamos ter convidado a senhora para se sentar na nossa mesa e, quem sabe, ouvir mais algumas histórias simpáticas, porque lhe percebi a vontade de conversar. À noite, quando me deitei, recordei o episódio e adormeci com a ideia de que as pessoas já não têm quem as ouça.
«Bebo ao lar em pedaços, À minha vida feroz, À solidão dos abraços E a ti, num brinde, ergo a voz… Ao lábio que me traiu, Aos mortos que nada vêem, Ao mundo, estúpido e vil, A Deus, por não salvar ninguém.» Anna Akhmatova
segunda-feira, 28 de abril de 2014
domingo, 20 de abril de 2014
...
Encontro uma mesa livre na esplanada e é onde acabo por me sentar. Feito o pedido, olho à minha volta; um casal na casa dos cinquentas desperta-me a curiosidade, pelo simples facto de não falarem um com o outro. Vão bebericando dos seus copos de vinho, e, de vez em quando, os olhares encontram-se e sorriem. Partilham o silêncio de forma cúmplice. E eu penso: o Amor também é isto, dois copos de vinho ao início da tarde, olhares de intimidade, um prato de amendoins, e a praça como testemunha da amizade que transpiram.
domingo, 13 de abril de 2014
imaginar
Imagino que estejas feliz. Que os teus domingos sejam feitos de sorrisos e doces prazeres. Que ao percorreres os quilómetros que nos vão afastando, estejas em paz.
Imagino que estejas feliz. Que te agradas com quem te agrada. Que chegas a casa e que nunca existi. Que te esperam.
Desligas.
Imagino que estejas feliz. Que não serei parte do teu mundo, que os últimos tempos não nos consumiram como chamas em gases tóxicos.
Imagino que sim. Que estejas feliz. Que amanhã a tua roupa não terá o cheiro de meu perfume que, agora, já te enjoa.
Desligas.
Imagino que seja assim. Que estejas feliz. Feliz por não teres apostado as fichas todas no nosso amor. Quando chegares ao teu destino, o cheiro a casa, outro cheiro que não o meu.
Imagino que aos três anos de trocas de nós, fluídos, saliva, e medula, haverá uma lua de sangue a celebrar a vida ou a morte em. Em quê?
Imagino que estejas feliz. Que a serpente que não nos se entrelaçou nos dedos seja a tua vantagem, mas vantagem de que jogo?
Imagino que sim que. És feliz.
quarta-feira, 9 de abril de 2014
é ali
dentro daquela garrafa que respira o miúdo. Tosco, desajeitado e pouco racional, espera algo que não sabe que forma tem. Apenas possui crenças que, por vezes, são aniquiladas por um reflexo de vidro escuro. Dentro daquele espaço, vai construindo o seu mundo, também este, desajeitado e imerso no caos. De olhar nos aviões que aterram algures por entre as torres de cimento, encolhe-se sem saber muito bem que tecer. Já há muito que se apercebeu que o sol surgirá novamente, amanhã por assim dizer, peneirado por aquela pequena abertura chamada "gargalo". Sabe que a fronteira é limite, e que a madrugada da vida assassinará sempre a sua noite. Não há gente que o encontre ali. Mergulhado, dentro da sua garrafa, bebendo a sua própria urina. Um dia morrerá, sem conhecer as coisas que haviam na mesa, onde a sua casa-garrafa há muito se fazia resplandecer.
sábado, 5 de abril de 2014
os Faustinos
Hoje, no triste enaltecer de mais um feixe solar esparso ou inaudito, lembrei-me de uma família que vivia muito perto de
mim. Eu devia ter uns, pelo menos, oito anos quando conheci a referida família. Lembro-me bem de vê-los
passar - vestidos de negro, olhar
cabisbaixo, olhar próprio de quem lambe pedras, de quem não quer ver um caminho
que existe à frente, próprio de quem já não acredita em qualquer caminho,
próprio de quem já não sabe e, muito menos, sente o prazer de chegar a casa.
Eram os Faustinos. Desde sempre me ficaram no coração. Ficam no coração todos
aqueles de quem sentimos compaixão, argumento devido e mais que sentido de quem
só sabe o que é espalhar pena. Sentia pena por aquela família e pelo triste
desenrolar que era aquela existência em conjunto. Senti – confesso, descabida e
advertidamente. Lembrei-me deles. Os dois filhos mais novos, recolhiam às
portas todo o cartão e mais algum que encontravam. Vendiam-no a oito escudos e
cinquenta centavos ao quilo. Passavam à minha porta com um carrinho
verde. Tinha duas rodas e um tabuleiro onde depositavam o cartão para ir vender
sabes-se lá a quem. O mais novo chamava-se António e tinha um dente que
não tinha. O irmão a seguir era o Joel. Eram onze irmãos. Fortes e robustos,
devido a quem vive na pobreza de casa, pobreza de alma e corpo. Comiam muito
pouco, pois muito não havia, e muito menos o que se poderia dizer de
suficiente. Viviam assim: a passear o carrinho carregado de cartão, para vender
a um filho da puta qualquer que os haveria de extorquir até ao tutano magro e
submisso. Nunca me esqueci deles. O irmão mais velho matou-se – o David.
Diziam que se enforcou. Também dizem que quando uma pessoa se enforca que se
vem. Ejacula. Urina-se. E tudo o mais que enoja os mais sensíveis. Foda-se,
David. David derrotou Golias. Por que não tu? O cartão, mesmo molhado, também é
difícil de esquartejar. E, por entre silvas, lá iam os irmãos a empurrar o
carrinho. Era assim que os via. Hoje, o carreiro de silvas e amoras nada mais é
que uma estrada. Passam carros. Há uma urbanização, um condomínio fechado, uma
pastelaria com bolos ricos e para ricos. Dos Faustinos nunca
mais soube nada, com excepção do António. Vi-o aqui há uns tempos numa
discoteca onde há o baile de velhas. Fui lá porque gosto de ver onde me vejo no
futuro. Estava com uma loura gorda e pagava-lhe bebidas. Beijava-a
intensamente. Estava feliz – via-se-lhe no olhar. Fiquei contente. Saí já torto
daquele antro de engate, sozinho, e a pensar que devia ter recolhido cartão
quando era mais novo.
sexta-feira, 4 de abril de 2014
as perdas
Todas as perdas que testemunhámos
esvaziaram-nos um pouco mais. Ora são as mortes do corpo, ora são as partidas
sem partidas de alma que nos sugam mais daquilo que nos faz. Na verdade, o que nos preenche está repleto de tudo o que perdemos; a
essência é assim - não se «enche» com algo que já tem. Quase
sempre a troca funciona desta forma – em défice.
quinta-feira, 3 de abril de 2014
mulheres apaixonadas
A sombra de uma mulher apaixonada é imensurável.
A projecção que a luz faz, ou aquilo que oculta, é um imenso horizonte sem pontos
cardeais definidos. A sombra de uma mulher apaixonada é maior que qualquer
sombra de uma mulher que não se abriu para o extremo oposto de uma qualquer
morte. Na ausência de uma dúvida plausível de ser falada, a sombra de uma
mulher apaixonada envolverá em sombras a mulher que não se apaixonou; cairá
também sobre a montanha de expectativas que entretanto cuidou de erguer. Essa
sombra mergulha na sua própria sombra. Sem intervalo de tempo certo e
definido, Norte, Sul, Oeste ou Este, serão meros sopros sem significado algum,
porque para uma mulher apaixonada, o lugar onde se encontra simplesmente não
existe no mapa daquilo que contempla.
quarta-feira, 2 de abril de 2014
nano conto #1
Benedita nunca conheceu os prazeres que só uma mulher lhe poderia proporcionar. Conheceu alguns homens, homens capazes de lhe leiloar o corpo. Benedita cresceu e viveu. Porventura, aproximando-se da sua morte, não saberá quanto lhe valeu o corpo.
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