domingo, 4 de outubro de 2015

do cume da desolação

Deste 10º andar, toda a vida me parece distante. Deste 10º andar, o mundo como o conheço deixou de existir. Não está em ti, esse defeito pernicioso – está apenas em mim. Por isso te ilibo adorável, apática e frígida criatura da Natureza. Estiveste sempre por mim aqui.
Deste 10º andar, todos os sofrimentos e dores passam ao lado, ou melhor, passam-me por baixo. Lá em baixo – tão longe. A vida de bairro pobre. A vida de bairro de antro, tascos, branca e castanha.
Como a vida me parece agora uma pequena miniatura esculpida sob arte humana, desfigurada, no entanto. Nos hiatos dos fumos discretos, penso que vivo mais aconchegado aqui, acho que sim, que estou bem aqui. Na distância das distâncias. Longe de tudo. Longe desse mundo que outrora conheci e parte dele que não conhecia, mas que com uma ansiedade estóica e desmedida queria conhecer. Deste 10º andar, recordo-me dos tempos de liberdade. As tardes de ócio a proclamar letras. Os cafés partilhados com os desconhecidos que, para que se saiba, me eram sempre rostos familiares e, de alguma forma, próximos. Escrevíamos, por vezes, a quatro mãos. Escolhi este 10º andar, porque esperava que a dor que não conseguia ver daqui – a dos outros – me ocultasse a minha. Um dia saltei. De elevador.

Por mais que me afastasse do centro do mundo, mais me aproximava do meu, e sem mais demoras e atalhos, apercebi-me que essa distância era ilusória. Morria também, sempre que alguém era alvejado à nossa porta. Era mentira afinal; quanto mais no alto e distante, mais próximo estava. Quanto tempo se passou para eu perceber isto? Quanto tempo se passou para eu perceber que me dava mais prazer, estar sentado na varanda a fumar cigarros, enquanto os ciganos se pegavam com outros traficantes dos bairros vizinhos, em vez de ir para a cama e te acordar para te perguntar: 
- é hoje que fodemos? - Há três meses que não o fazemos.

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