quarta-feira, 29 de julho de 2015

estrela

Chegas-me quatro anos depois daquele dia em que te conheci. Entras como se conhecesses os cantos da minha casa. Olhos vendados e ainda assim o teu tacto encontra-me sem demoras, apelo e agravo. Trazes contigo o calor morfina, o mesmo com o qual não me urdiste no tal dia que vive agora em mim e no qual nos cruzámos. E vêm os fragmentos.

Um final de tarde de sábado, ali na pastelaria João XXI na esquina com a Augusto Gil. A L., esquizofrénica do bairro, está sentada na minha mesa. Diz-me, pela centésima vez, que não aguenta mais que o pai e o irmão a controlem; que contem o dinheiro até às moedas «pretas» para que não possa beber, e, mais tarde, aparecer com homens em casa. Coisa que ela – diz – fazer muitas vezes quando eles não estão. Diz-me que a Olanzapina que toma lhe dá uma ternura de abraçar céus e que se sente um animal domesticado, mas que, de manhã, lhe apetece beber um copo de vinho «Flor das Tecedeiras» porque a recorda os bancos de jardim junto aos ciprestes do Júlio de Matos. Tentar respirar – digo – enquanto vou bebericando do meu Bushmills. Ela responde: dá-me um gole, ao que digo que não vou ser cúmplice da manipulação dos químicos que lhe estraçalham as veias. Está bem – suspira – gosto de ti porque falas comigo. 

O meu telefone toca. É a C. Pergunta-me se quero ir jantar com um grupo de amigos que se reúnem frequentemente ali para os lados da Guerra Junqueiro. Mas hoje é em Santos, e a seguir ir «dançar a qualquer lado». Hora marcada. Banho tomado à pressa porque a L. me demorou com a versão estendida sobre o processo de fabrico do azeite, cigarros no bolso, mais um escocês que aterra no estômago e apanho o metro.

Estão todos. Mas no meio – estás tu e um rapaz que não conheço. E tu olhas para mim de fugida, sorris, e voltas à conversa do outro. A C. arrasta-me para junto de vocês e diz – este é o Fernando. Tu olhas, beijas-me e dizes – Sou a N. e este é o D. Junto-me à conversa que a C., sempre diplomática, já está a gesticular e organizar os restantes. Vocês falam de trabalhos gráficos, agências de publicidade, fadas, fotografia a preto e branco de corpos nus, instalações artísticas debaixo da ponte 25 de abril, e o caralho mais velho, quando, de súbito, me perguntas – que pensas tu acerca desejo? e sai-me qualquer disparate como: todos os corpos com as devidas condições de exposição e entrecortados pelas trevas, podem despertar o desejo, nem que seja um corpo de 120 kg. Eu, no meu podre maior. O D. diz que tenho tiques femininos e pergunta-me se sou gay. Digo que se o sou que ainda não o descobri. Tu olhas-me e sorris. Voltas aos seres especiais que voam e aos cavalos selvagens que dizes respirarem-te no peito.
Entretanto, a C. traz um charro que circula entre nós no sentido anti-horário. Deveria ser um sinal - penso, e quando chegam as seis da tarde, a minha vez portanto, dois bafos profundos e, sentado na minha planície de enganos, estendo a mão para o J. que diz: mato. Tu ofereces-me uma cerveja e eu recuso porque sou cagão – digo - Corona ou Desperados. De qualquer maneira hoje a minha rota contempla a espiritualidade escocesa. 

Jantamos. Depois, alguém grita: Miradouro de São Pedro de Alcântara. Outro grita Lux - mas é cedo – replica um terceiro. E não sei bem vinda de onde, do Vietnam se calhar, chega a S. que eu conheço de outras guerras de lençóis, aos quais fugi assim que pude, porque fui cabrão e a usei e ela diz: N. – tu conheces este traste? Conheci-o agora. Afasta-te que este não te traz notícias que queiras ler. Leva-te para um canto, e vejo-a esbracejar muito e virar-te por duas vezes as costas, mas a voltar-se para ti e a agarrar-te pelos braços como se te quisesse contagiar com uma doença qualquer. Voltam as duas. E eu digo – Lux, não obrigado. Convido-te para vires ver a vista da varanda do meu quarto. Tu não me conheces – dizes – queres foder-me, não é? Dizes que não e nisto o J. chama-te para irem mandar um último risco supersónico dentro. Tu vais, rematando: querias fazer o mesmo que fizeste à S., mas eu prefiro o azul do que o cinza e amanhã viajo para o Perú.
Fico especado a olhar para o teu corpo esquálido, tortuosamente apetecível, que desaparece por entre a multidão, tortuosamente indesejável, enquanto digo para mim próprio: fodas-se, não percebo muito bem estas mulheres estranhas.
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A branca é uma merda.

Acendo um cigarro, bebo um copo de rajada, e depois outro, e ainda um último que será o primeiro? Despeço-me da C. e do D. que ainda me pergunta se não quero ir «dar uma volta» com ele. Sorrio. Outro dia quem sabe. Chamo um táxi e o tipo pergunta-me – para onde? Passerelle na Óscar Monteiro Torres, por favor. Acabo a noite a ver mamas e conas coladas no varão. Corpos suados das eternas contorcionistas da indústria dos alumínios, coleccionadoras dos cromos do champanhe. Tiro umas fotos que não devo e sou convidado a sair. Despeço-me da Romena das tranças. Caminho para casa, uns duzentos metros à frente, talvez. A L. já tem a luz apagada. A Ketamina já lhe deu asas no sono, penso. Subo as escadas, o cabrão do senhorio que não manda arranjar o elevador. Atiro-me vestido para a cama de cacos e de espinhos fodidos, contos de horrores na penúrias da pobreza de espírito e recordo-me das tuas palavras: queres foder-me, não é?

Quatros anos depois, vidas ao ar, mundos percorridos, países viajados, outros odores, outras trocas, voltas e espirais celestes, mancebos, corruptos, chulos nos antros, as empregadas da limpeza, as subidas solitárias do alto da Algés, porque o Sr. Juan era um excelente psicólogo de balcão, Sintra, as bolas de Berlim na praia verde, o manta beach, as bifanas de Benfica, o Batucada, os encontros literários, as peças do Turim, actrizes em festas, casas transformadas em circos, autênticos arraiais populares na vertigem de ir ao fundo fé promiscua e decadente, piscinas onde nadámos nus debaixo das noites concupiscentes, toda a parafernália de auto-estradas percorridas de madrugada, o desmaio junto aos bombeiros, depois disso tudo, entras sem eu dar por ela, e visito-te sem saberes, também, e fico a saber que é uma fotografia na qual tropeçaras, que te traz à cabeça que afinal não fui tão parvo e indiferente, depois disse tudo e de horas inteiras a encaixar as peças, chegarmos à conclusão que 1+1 são sempre 3.

Hoje, no meio de um verão sem início e sem fim, dizes-me: vem ter comigo e em vez de me foderes, fodemos por amor os dois, lentamente, pode ser?

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