quarta-feira, 9 de setembro de 2015

long way home

Pagas. E sais a cambalear. Espera-te uma caminhada solitária pela estrada deserta. A noite, quente e clara, proclama alguns quilómetros sombrios, dentro de ti. Que contradição é esta? Altura é tramada em distância. De vez em quando, um carro abranda. Moonshiners.
»onde é que esta alminha vai?«
Acaba por acelerar logo a seguir e destino com ele. Passo por um tasco, discussão a sério cá fora, porrada iminente, cheira-me; fodeste a minha mulher e agora o quê, foi bom? - diz um - enquanto empurra outro ligeiramente mais baixo. «Não foi como pensas». 
Nunca é, fica-se sempre pela imaginação. Ela de cremalheira escancarada a foder o amigo do marido, e este que só pode imaginar-lhe o corpo rendido ao prazer alheio, a curiosidade mórbida que agora lhe alimenta a grande questão: foi «melhor» do que com ele, e teme que a resposta venha da parte dela: é mais homem que tu. 
Um grupo à volta tenta cercar os barris de pólvora. Olhos na rotunda longínqua. Sigo caminho, que esta peça de teatro não é para mim, não hoje, pelo menos. Depois, de repente, com aquilo tudo, incluindo o pó no ar e que me vai preenchendo pulmões e tecidos, vem-me à cabeça a confusão toda que o Milton debita quando os anjos são expulsos do cerco das harpas. Lúcifer do seu «Pandemonium» compra a aprovação dos outros traidores que, confundidos, nem sabem muito bem que a mão árida e pesada de Deus, os remeteu para o concílio da vingança e reconquista do reino celeste. Mas depois à laia do «dormi com a tua mulher, amigo» — «Melhor reinar no Inferno do que obedecer no Céu.» - diz ele, ele que supostamente tinha a beleza da estrela da manhã, e que fora muito amado pelo seu Amo.
O poder é fodido. E os ídolos, também. E como a mulher é o centro de tudo, e tudo começou como ela, é natural que, um dia destes, a ruína também chegue sobre a sua haste. «Foi inevitável» dirá a criatura, na tela que pinto; palavras essas que o corno há-de apagar com poções mágicas de rum, destilaria, ou outra merda qualquer. Dêem-lhes droga, dinheiro e sexo, que eles - humanos - fazem o resto; não será preciso puxar muito pelas cordas dessas patéticas marionetas - diz a estrela da manhã - eles fazem o seu próprio altar de degredos. Lúcifer no meio desta interminável recta. 
Já nem me lembro muito bem como chegar a casa. O Algarve é vazio. E eu também, gasto. Uma Lilith e um Robert Johnson no cruzamento mais à frente.
»a crossroad ia a perfect place to establish a pact with the devil«
«With a ten dollar guitar» - os blues dos amores funerários, quem beijou de morte quem?
E continuo no caminho de asfalto esburacado fora, agora com a tua cama no peito, locomotiva descontrolada a pisar-me desenfreadamente, sangue que me escorre por dentro e por fora, sangra este Carneiro de facada.
E ali ao fundo, encadeado por faróis de carros astrais, o teu corpo fino e frágil, desfolhado na madrugada, coração tatuado, amor nos lençóis com odor a velas de cemitério que ardem infinitamente sobre flores e coroas murchas. Quem vai destruir quem? 
De longe ainda ouço um ganido: «achas que eu merecia seu grande filho da puta?» Não, ninguém merece, mas trabalha para isso desde do dia zero, acredita.
Caminhar, caminhar, quase duas e meia da matina, que o corrector quer marina - dêem-lhes a tecnologia - diz a estrela da manhã. «Slide». Marla Singer de bafo gelado e um Pinguim que desliza. «You're a faker Marla»
Entro nos portões da Vila, urbanizações de famílias que amanhã empurram carrinhos de bebê para a areia da praia em silêncio, porque o doce há muito que não é amargo, mas sim ácido.
As ruas desertas, os bares e café fechados, Setembro como fim de romaria de desperdícios. Setembro como mês de tudo ou nada. Pelo corta-mato que faço, já sei onde estou, dois putos a comerem-se num pano de fundo de canaviais. »aproveitem enquanto essa merda dura« 
O corpo adormecerá com a alma e com o coração apedrejado, a bagagem fodida, carregada por ombros cansados, olhos desnutridos, a vida quase toda num instante de crenças abolidas.
Noite, quente e clara, toda ela nestes bafos que dou no último cigarro da noite. Azazel, dá-me tu uma cama, de exausto que estou, para que não sinta as costas em flagelo.
Dois minutos depois, a esperança neste gesto: o de rodar a chave na porta de uma casa alugada. Talvez, os pensamentos façam parte da renda. E fiquem cá, quando a bússola me orientar novamente para cima, para Oeste do meu Norte. O Algarve é vazio. 
«fodeste a minha mulher e agora o quê, foi bom?»
Agora, aguenta-te, eu sei que consegues.

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