quarta-feira, 1 de julho de 2015

mortes minhas

Chegas-me durante a madrugada. Não sei se me sinto já. A luz baça dos candeeiros é agora estaca no coração, tormento de fuso, amiga imaginária, doce refugo da vontade que tenho em que fiques. Quanto tempo se passou? O teu cancro. Esse filho de puta que nos te roubou. Pérfido conviva de passo leve e sorrateiro a ceifar-te. Caio no chão e agarrado ao estômago, grito sem esboçar qualquer som. Onde estás? E vejo-me ali atrás do muro a regurgitar a alma toda, coração na boca, pulmão na ponta da língua – meu Deus – creio nos falecimentos oblíquos, jazigos de pedra no tacto ínfimo da memória. Eu ali rasto feito e tu a amparar o meu corpo esquálido de sentimentos. Tu a acenderes um cigarro e a dizeres-me: vai passar. Vai passar – repito, sem sequer imaginar que tinhas razão porque o que tu sabias era na verdade muito daquilo que eu não. Tu a sorrires e a dizeres – tonto. E chegas-me na palidez do que me lembro – a tua voz frágil a roçar o tom senil que a vida canta quando se despede. Tu a dizeres-me: vamos ao “baile das velhas”. Eu a rir. E eu ali à entrada, com o porteiro a falar-me das fintas espectaculares de um boliviano qualquer, e tu a com a cara de gozo sabendo que eu não percebia nada do assunto e nem sequer sabia de quem é que ele estava a falar. E dóis-me nas pontas encharcadas dos lençóis onde vou limpando o rosto à medida que desfilas no sangue escuro das minhas veias. E eu ali, sem saber dar um passo de dança, encostado ao balcão a pedir mais um. Tu divertida. Com a felicidade estampada na cara, a «esvoaçar» de lá para cá e e outra vez para lá – vai passar – parece dizer-me o teu olhar afoito e silencioso –, agora à distância maior de mim. No caminho de volta, cansados que a manhã era coisa de minutos, costumávamos parar ali no café ao pé da tua casa onde me deixavas já exaurido. Tu sorrias e dizias – tonto. E eu, que nem sequer te consegui visitar no IPO, tento adormecer, com o esforço para apagar de mim os momentos em que nos vejo ali aos dois noutro tempo qualquer. Juízo! – dizes-me outra vez. Olho para o despertador – 5:04. A morte quando nos leva os amigos deveria perguntar-nos se podíamos ir também. Mas não é nossa hora, ainda.

Em memória da Lina.
Julho, 2011

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