quarta-feira, 10 de junho de 2015

verão regado

Há cidades antigas, desprovidas de gente e de almas que deveriam divagar, nunca se morre - digo -, cidades sem sol, orquestras que transpiram notas obsoletas, somos marginais e ambos sabemo-lo. Tua luz, tua sombra, teu sotaque sem apelo nem agravo, um gesto singelo do que poderias ser, um «talvez» na boca do coração exaurido, leve a misericórdia, de joelhos no chão, teus cabelos nas minhas virilhas, teu olhar sinuoso, o quase silêncio de morte no hiato do roçar indelével na pouca roupa que sobra, os chifres do diabo apaziguado na minha tíbia, as têmporas frias - até ao fim - suspiro. Passar por aí, na casa dos enganos, altares destruídos, pedras de ara ao mar, protecção suprema reduzida, os fios da electricidade fodidos, os bêbedos a cantar através das portadas abertas de par em par, a realidade distorcida nos contornos das paredes onde sou uma habitação sem assoalhadas, a imaginação parada, estanque a si mesma, a trovoada a reverberar no copo de cristal vazio, a eterna superfície árida na dor do esquecimento. Cuba tão perto, escritos carimbados pela maresia, Miami uma miragem. Tu e outro. Tu e eu, na cama de espinhos, cercados por velas e incensos, intoxicados pelo que é bom mas que não irá ser lembrado, lençóis molhados, verdades polidas, e a solicitude da atenção desvelada - somos marginais -, enquanto Glória, a única, lê o livro do desassossego para quem passa lá para os lados do Chiado. Não há fim que dure no Fernando. Pessoa ou não.

                                                                                                                Leiria, Junho ou Julho de 2014

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